O Nascimento da UFCG
Por Márcio Caniello
Ontem, 09 de abril, dia do aniversário de dez anos da UFCG, publico o terceiro post sobre a história da Instituição (acesse As origens da UFCG e O salto quântico da UFPB). Para
a construção deste texto, vali-me de minhas lembranças sobre o processo e dos
documentos disponíveis no portal da UFCG (que serão referenciados
posteriormente). Contei também com informações de Thompson Mariz e José Edílson
Amorim (os quais entrevistei sobre o assunto em maio de 2009) e Bráulio Maia
Júnior, Wagner Braga Batista e Hermano Nepomuceno, com quem conversei nesta semana sobre a criação da UFCG. Agradeço a todos, eximindo-os, evidentemente, de qualquer responsabilidade sobre as ideias aqui
expostas.
Corriam os anos noventa. Findo o ciclo discricionário das ditaduras
militares na América Latina que, depois de trucidarem as liberdades
democráticas no continente, deixaram como saldo a chamada “década perdida” – os
anos de profunda estagnação econômica, retração da atividade industrial, amplo
desemprego, perda do poder de consumo da população, hiperinflação, dívida
externa galopante e a própria queda do Produto Interno Bruto – os governos
neoliberais, então hegemônicos, elegeram o déficit público como o grande vilão
a ser combatido.
De fato, como em outros momentos críticos da história dos países
emergentes, os governos gastavam muito mais do que arrecadavam, e a solução
encontrada pelos neoliberais foi o estabelecimento do chamado “Estado mínimo”,
isto é, a implantação de uma estrutura estatal puramente gerencial, o que
enxugaria os gastos do governo, superando a crise em que os países estavam
mergulhados. Entre as tantas consequências desse processo, o que não cabe aqui
analisar, o impacto nas universidades federais foi o chamado “processo de
sucateamento”, constituído pela drástica redução do financiamento em custeio e
capital para as IFES e pelo arrocho salarial, gerando um período extremamente
conturbado, entrecortado por greves frequentes e periódicas.
Foi nesse contexto que a UFCG seria gestada, embora não possamos
deixar de citar a iniciativa pioneira do deputado Otacílio Nóbrega de Queiroz,
que ao apresentar um projeto de Lei em 1975 com a proposta de criação da
Fundação Universidade Federal de Campina Grande - que seria formada pela fusão
do Campus II da UFPB com a
Universidade Regional do Nordeste, predecessora da UEPB – inscreveu o
designativo pela primeira vez nos Anais da República. Também não devemos
esquecer que ele mesmo reeditaria a propositura em 1984, a qual, com um
substitutivo do deputado Aluízio Campos incluindo os campi do Sertão, seria
amplamente discutida na cidade e no Campus
II, já então com a Associação dos Docentes (ADUF) participando ativamente
dos debates. Ainda devemos citar a propositura de igual teor do deputado Evaldo
Gonçalves, em 1989, mas, embora sejam iniciativas históricas dignas de nota,
esses projetos tiveram muito pouca repercussão no Congresso Nacional e nos
governos de então.
Assim, a “gestação” da UFCG começaria efetivamente em 1992, em pleno
governo Collor, com a misteriosa nomeação de uma comissão da Secretaria Nacional
de Educação Superior do MEC (SENESU), então dirigida por Eunice Durham, para
fazer um “estudo de viabilidade” sobre o desmembramento da UFPB. Segundo os documentos
alusivos à criação da UFCG publicados no portal da instituição, “a comissão
concluiu seu trabalho recomendando o desmembramento, adiantando inclusive que
sua consecução não implicaria em acréscimos significativos de despesas”. Ora, para um governo que cortou drasticamente o
orçamento das IFES, chegando a uma redução total de 39% no último ano de seu
interrompido e malfadado mandato [1],
que não criou nenhuma nova universidade federal e que ainda investiu
pesadamente na tese da privatização do ensino superior, isso soa muito
esquisito.
Pode-se supor, portanto, que esta teria sido uma articulação do então senador
Raimundo Lira, que rompera com o PMDB ao anunciar seu apoio a Fernando Collor
de Melo em 1989 e se tornara, já então no PFL, coordenador da campanha de
Collor na Paraíba, ao lado de seu ex-desafeto Tarcísio Burity [2].
Na época da nomeação da comissão, Lira cumpria o sexto ano de mandato, se
preparava para a campanha de reeleição e, certamente, a criação da UFCG seria
um bom capital político. Aliás, os jornais da época demonstram o ativíssimo
engajamento do senador nessa luta. Mas... o impeachment de Collor viria a abortar
os dois projetos: nem a UFCG foi criada e nem Lira reeleito.
De qualquer maneira, o projeto que fora lançado oficialmente, com a
chancela de um relatório favorável do MEC e que mobilizara a cidade em torno da
ideia, recolocava concretamente a possibilidade de se criar a UFCG por
desmembramento da UFPB. Três eram os fatores que convergiam para essa
possibilidade.
Em primeiro lugar, certo sentimento de exclusão em relação ao centro de
decisões da universidade, pois, embora próximo geograficamente, o Campus II encontrava-se distante
geopoliticamente do gabinete do reitor. Em decorrência disso, criticava-se o
“gigantismo” da universidade como elemento de dificuldade operacional que
desfavorecia os campi fora de sede [3].
Em segundo lugar, uma insatisfação com a partilha dos recursos humanos e
orçamentários na Universidade, pois cabia ao Campus II apenas 25% do orçamento geral, quando este detinha 27%
dos professores da UFPB, um Hospital Universitário e uma infraestrura complexa [4].
Ademais, apenas 22% dos servidores técnico-administrativos da UFPB eram lotados
no Campus II, para darem conta das
atividades do Hospital Alcides Carneiro, biblioteca, restaurante
universitário, residência universitária, subprefeitura, creche, NPD, a
mina escola, centros e departamentos do campus, bem como de
assuntos comuns aos outros cinco campi fora de sede por meio da
Pró-Reitoria de Assuntos do Interior (PRAI), instalada em Campina
Grande [5].
Finalmente, mas não menos importante, havia uma identidade fortemente
arraigada na tradição de excelência do Campus
II - cujo símbolo supremo era pós-graduação do CCT - e na própria história
de protagonismo da cidade de Campina Grande, o que levava ao desejo de criação
da UFCG, dando aos campinenses a oportunidade de conduzirem os próprios
destinos de um Campus que possuía uma
estrutura administrativa e acadêmica compatível com qualquer universidade
federal do país. De fato, numa área construída de 70 mil metros quadrados, em
1996, 3.904 alunos estavam matriculados em vinte cursos de graduação, 378 em dez
cursos de mestrado e 52 em dois cursos de doutorado (2/3 do total de
doutorandos da UFPB) [6]. Considerando a classificação
atual da CAPES [7], o Campus II desenvolvia ensino, pesquisa e extensão em sete das nove
áreas de conhecimento (Ciências Exatas e da Terra, Engenharias, Saúde, Ciências
Agrárias, Ciências Humanas, Ciências Sociais Aplicadas e Linguística, Letras e
Artes), contava com 17 grupos de extensão, 36 grupos de pesquisa consolidados e
183 bolsas de iniciação científica [8].
Ademais, os professores do Campus II tinham
uma qualificação acima da média da UFPB, com 15,58% de doutores (contra
14,52%), 44,76% de mestres (contra 43,8%) e 39,66% de graduados/especialistas
(contra 43,8%) [9].
Entretanto, antes e depois do reitorado de Lynaldo Cavalcanti
(1976-1980), todos os reitores da UFPB eram professores lotados em João Pessoa
e Campina Grande sequer lograva emplacar um vice-reitor. Mas, no início dos
anos 90 começava a ascensão política de um ativo grupo de professores do CCT
que redundaria na eleição de Roberto Siqueira, do Departamento de Engenharia
Elétrica, como vice-reitor de Neroaldo Pontes e, depois, de Marcos Brasileiro e
Thompson Mariz, respectivamente, como vices nos dois mandatos de Jáder Nunes.
Foi esse grupo, motivado por parlamentares que asseguravam que o ministro da
Educação estaria receptivo à criação da UFCG [10]
que recolocou a questão em pauta, através de uma carta dirigida ao reitor em 30
de março de 1995, na qual o então Pró-Reitor de Assuntos do Interior, professor
Jorge Beja, secundado pelos diretores e vice-diretores de centro do Campus II, posicionavam-se
favoravelmente à ideia [11].
Em resposta a essa articulação, o reitor nomeou uma “Comissão de Desmembramento
da UFPB”, tendo ele próprio como presidente, Roberto Siqueira como vice e
Thompson Mariz como secretário, para promover discussões na comunidade
universitária e construir um anteprojeto para tal fim.
O debate não foi pacífico, pois duas teses foram discutidas
acaloradamente durante os oito meses em que a comissão trabalhou. De um lado,
as lideranças do CCT defendiam a criação da UFCG como uma estratégia de
aperfeiçoamento gerencial, argumentando que o “gigantismo” da instituição
emperrava o seu desempenho. Por outro lado, as lideranças do CH e da ADUF
argumentavam que a divisão da universidade a fragilizaria no contexto do
“sucateamento” que assolava as IFES em função do “ajuste neoliberal” empreendido
pelos governos Collor e FHC. Os campi do sertão (Patos, Sousa e Cajazeiras)
tomaram uma posição salomônica: em princípio eram contrários à divisão da
universidade, mas concordavam com a criação da UFCG contanto que continuassem
pertencendo à UFPB. No auge do processo de discussão um grupo de professores intitulado
“Movimento Pró UFCG” promoveu um plebiscito extraoficial em que a tese da
criação da nova universidade venceu por pequena margem de votos.
No dia 5 de fevereiro de 1996 o relatório final da Comissão de
Desmembramento que concluiu haver “viabilidade na criação da Universidade
Federal de Campina Grande (UFCG), a partir do Campus II da UFPB” [12]
foi aprovado em reunião do CONSUNI realizada em Campina Grande. Ato contínuo, o
reitor constituiu a Subcomissão Especial Pró-UFCG, presidida por Mário Araújo
Filho (CCT), tendo como membros Virgílio Brasileiro, representando a PRAI, Lula
Cabral (CH), Antonio Roberto Vaz Ribeiro (CCBS) e Gilberto Silva de Siqueira
(HUAC). Instalada solenemente em 8 de março do mesmo ano, a subcomissão
elaborou o estudo de viabilidade para a criação da UFCG [13],
o qual formaria a base da exposição de motivos enviada pelo reitor ao ministro
da Educação em 23 de julho de 1996 [14]
e do relatório favorável da comissão do MEC, presidida por José Luis Valente [15].
E nisso
ficou, não podendo ser diferente numa conjuntura em que a criação de uma nova
universidade federal não passava nem de perto pelos planos do governo, já que
Fernando Henrique Cardoso priorizara em sua agenda política a reforma da
administração pública como a principal estratégia para o enfrentamento da crise
fiscal, a consolidação da estabilização monetária e a retomada do crescimento
econômico, com a “diminuição do tamanho do Estado” e um papel maior ao mercado
na coordenação da economia. A reforma do Estado seria operada através de três
processos: a privatização de empresas públicas, a terceirização - efetivamente
realizadas - e a publicização, isto é, a transferência da gestão e prestação de
serviços antes ofertado pelo Estado, como os serviços sociais – a educação e
saúde, dentre outros – para o setor dito “público não-estatal”, ou terceiro
setor, composto por entidades da sociedade civil de fins públicos e não
lucrativos [16]. Quanto às
universidades, a proposta era transformá-las em “organizações sociais”, tal
como preconizaria a Lei 9.637, de 15 de maio de 1998, isto é, em fundações de
direito privado, já que para o ministro Bresser Pereira, artífice da reforma,
“na União os serviços não exclusivos do Estado mais relevantes são as
universidades, as escolas técnicas, os centros de pesquisa, os hospitais e os
museus” (Apud Alves, 2011).
Assim, a criação da Universidade Federal de Campina Grande foi
postergada até o último dos oito anos do governo de Fernando Henrique Cardoso,
quando, como por encanto, foram criadas cinco novas universidades federais,
entre as quais a UFCG, cujo projeto de Lei de autoria do Executivo foi enviado
ao Congresso Nacional, ao que tudo indica, em virtude de uma articulação do
senador Ronaldo Cunha Lima.
Nascida a fórceps no final de um governo que reduziu em 21% o já então
corroído orçamento das IFES [17]
e em que proliferaram as instituições de ensino superior particulares em detrimento
das públicas, a UFCG demonstraria que viera ao mundo num contexto adverso, mas que
nascia pronta para se consolidar como instituição. Realmente, quando ventos melhores
sopraram para as Instituições Federais de Ensino Superior, a UFCG se agigantou.
Mas essa é outra história.
[1]
SCHWARTZMAN, Jaques: Políticas de Ensino Superior no
Brasil na década de 90. O financiamento das Universidades Federais.
Trabalho apresentado na XIXª Reunião Anual da ANPED. Caxambu, 1996. Acesse aqui
[2]
Segundo matéria do site Lana Caprina. Acesse aqui
[3]
Universidade
Federal de Campina Grande: elementos para sua criação, p. 4. Campina
Grande, UFPB, 1996. Acesse
aqui
[4]
Proposta
de Criação da Universidade Federal de Campina Grande. João Pessoa,
UFPB, 1996. Acesse
aqui
[5]
Proposta
de Criação da Universidade Federal de Campina Grande. João Pessoa,
UFPB, 1996. Acesse
aqui
[6]
Relatório
da Comissão do MEC sobre a viabilidade da criação da UFCG. Campina
Grande, UFPB/PRAI, s/d. Acesse
aqui
[8]
Relatório
da Comissão do MEC sobre a viabilidade da criação da UFCG. Campina
Grande, UFPB/PRAI, s/d. Acesse
aqui
[9]
Proposta
de Criação da Universidade Federal de Campina Grande. João Pessoa,
UFPB, 1996. Acesse
aqui
[10]
Universidade
Federal de Campina Grande: elementos para sua criação, p. 7. Campina
Grande, UFPB, 1996. Acesse
aqui
[11]
Universidade
Federal de Campina Grande: elementos para sua criação, p. 7. Campina
Grande, UFPB, 1996. Acesse
aqui
[12]
Universidade
Federal de Campina Grande: elementos para sua criação, p. 8. Campina
Grande, UFPB, 1996. Acesse
aqui
[13]
Universidade
Federal de Campina Grande: elementos para sua criação. Campina Grande,
UFPB, 1996. Acesse
aqui
[14]
Proposta
de Criação da Universidade Federal de Campina Grande. João Pessoa,
UFPB, 1996. Acesse
aqui
[15]
Relatório
da Comissão do MEC sobre a viabilidade da criação da UFCG. Campina
Grande, UFPB/PRAI, s/d. Acesse
aqui
[16]
ALVES, Flávia de Freitas. A reforma do Estado nos anos 90 e sua influência na
autonomia das Universidades Federais Brasileiras. Trabalho apresentado no 25º
Simpósio Brasileiro e 2º Congresso Ibero-Americano de Política e Administração
da Educação. São Paulo, ANPAE, 2011. Acesse
aqui
[17]
Amaral, Nelson Cardoso. “Autonomia e financiamento das IFES: desafios e ações”.
Avaliação.
Campinas; Sorocaba, SP, v. 13, n. 3, p. 647-680, nov. 2008. Acesse aqui
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