NÃO FOI PRECISO ESPERAR o dia 21 de dezembro de 2012 para constatar que os maias erraram, de longe, a previsão do fim do mundo. Os historiadores sabem que na civilização maia o mundo acabou em 1697, quando Noj Petén, a última cidade-estado do povo que dominou o Yucatán por três milênios, caiu diante dos conquistadores espanhóis.
A própria existência da profecia, na verdade, já não é mais aceita pela maioria dos estudiosos. A hipótese de que os maias aguardavam o fim do mundo foi levantada pelo arqueólogo Michael Coe, em 1966, baseada numa análise que relacionava o fim de um dos ciclos do calendário maia com mitos nutridos por aquela cultura. Hoje, poucos historiadores aceitam que os povos do Yucatán realmente estivessem anunciando a data do apocalipse.
Místicos, astrólogos e aficcionadas por cultura pop, porém, disseminaram esse mito moderno, que já saiu do controle da academia. Pouca gente se preparou para o armagedon pré-natalino de 2012, claro, mas todo mundo aproveita a data para fazer piada com os maias. (A mais popular é a de que o fim do mundo foi precipitado pelo título do Corinthians na Libertadores.)
Brincadeiras à parte, posso me gabar de já ter passado pelo lugar onde o mundo dos maias acabou de verdade. Numa viagem de férias em 2008, estive por algumas horas na ilha de Flores, na Guatemala, local onde antes ficava Noj Petén. Eu estava curioso para ver com quê o apocalipse se pareceria.
Para um aficcionado por arqueologia em busca de algo interessante para ver, Flores realmente é o fim do mundo. Nada restou para ver a não ser um vilarejo com casas de pintura descascada, bares à beira do lago, meia dúzia de pousadas, uma escola, e motoristas de “tuc-tuc” (triciclos motorizados) levando gente para cima e para baixo. Pedras que antes compunham as pirâmides e templos da cidade foram usadas na construção da igreja local e outros edifícios.
O que leva turistas a passarem por Flores, na verdade, é o único aeroporto comercial do Petén, a floresta onde se localiza a antiga cidade de Tikal. Essa sim é um sítio arqueológico portentoso, que chegou a abrigar uma população estimada em 50 mil pessoas e ainda exibe seis pirâmides de grande porte.
Tikal só não foi destruída pelos conquistadores porque já tinha sido abandonada séculos antes de os espanhóis chegarem, por volta de por volta de 900 a.C. Arqueólogos ainda debatem se a população da cidade foi aniquilada por um ciclo brutal de guerras, por uma crise ambiental ou por um conjunto de fatores incluindo essas duas hipóteses. Se Tikal ainda estivesse viva no ano 1500, provavelmente os espanhóis a teriam demolido. Enterrados no meio da mata, porém, os enormes edifícios de pedra sobreviveram para depois serem descobertos pelos arqueólogos.
A previsão do apocalipse maia, afinal, estava tão errada que o fim do mundo aconteceu duas vezes para aquela civilização, antes da data apontada. A primeira delas, marcada pela derrocada de Tikal, foi o término do período clássico da civilização, durante o qual os maias usavam seu genial sistema de escrita para registrar a história.
No século 16, quando os espanhóis desencadearam o segundo fim do mundo, poucos indivíduos maias ainda dominavam a escrita, e grandes cidades do pós-clássico eram controladas por uma elite iletrada. A cultura de alfabetização foi exterminada de vez quando padres católicos baniram a escrita maia e promoveram a queima da maior parte dos códices —os registros de história, mitos e tradições maias em cadernos de cortiça.
Esse outro fim do mundo não poderia vir de forma pior: além de terem seus líderes destituídos e suas cidades arrasadas, os maias tiveram boa parte de sua memória aniquilada. O povo nativo do Yucatán, claro, nunca sumiu, e a cultura maia ainda existe, transformada pelo tempo, em qualquer lugar que se visite na região. A escrita maia foi decodificada por acadêmicos na década de 1970, e o que restou de documentação gravada em pedra (além de quatro códices sobreviventes) ajudam hoje na reconstrução da história maia.
E, finalmente, três séculos após a queda da última cidade maia, a cultura daquela civilização começou a entrar na moda. Provavelmente porque Chichén Itzá, o maior conjunto de ruínas maias do pós-clássico, fica perto de Cancún, o maior balneário do Caribe. Quem visita o sítio arqueológico hoje se vê em meio a uma multidão de turistas. Alguns estão em trajes de banho (dando um tempo da praia), outros são apenas curiosos e outros estão em busca de experiências místicas.
Picaretas de plantão já inventaram uma astrologia baseada no calendário maia, e camelôs no sítio arqueológico ocupam espaços em meio às ruínas para vender cartilhas místicas e miniaturas de pirâmides. Em 2008, entrevistei Michael Coe (o arqueólogo que “inventou” o fim do mundo), que reclamou bastante de como esse tipo de turismo está atrapalhando os trabalhos de escavação no local.
Estereótipos à parte, a história do povo maia oferece, sim, uma perspectiva única para compreender a saga da humanidade no planeta, e merece ser objeto de fascínio. Entender a ascensão e a queda de uma civilização que atingiu o grau de sofisticação dos maias —totalmente isolada da influência de povos europeus e asiáticos— é um prato cheio para a antropologia. Será que o desenvolvimento da escrita estaria destinado a surgir em qualquer comunidade humana ao longo do tempo? Será que, na ausência dos espanhóis, as cidades-estado se agrupariam em reinos e impérios, como aconteceu na Europa e na Ásia? Questões fundamentais sobre a natureza das sociedades humanas podem vir a ser respondidas com ajuda do estudo daquela cultura.
Movido por esse fascínio, viajei ao mundo maia duas vezes, em 2007 e 2011, quando conheci dez sítios arqueológicos, cinco cidades históricas e museus que registram arte e cultura daquele povo. Para celebrar o apocalipse de 21 de dezembro, agora, vou compartilhar aqui no blog um pouco do que aprendi na região. Pretendo publicar mais dois textos, além deste primeiro.
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