"Estamos cheios de mosteiros democráticos", disse Cristovam Buarque
(Foto:Wilson Dias/ABr)
Uma universidade democrática não é
aquela que tem um reitor eleito pela maioria dos estudantes, professores
e funcionários, mas aquela que serve aos interesses da sociedade. Essa é
opinião do senador e economista Cristovam Buarque (PDT), o primeiro
reitor da Universidade de Brasília (UnB) eleito diretamente pelos
integrantes da instituição, após a Ditadura de 1964.
Ele acredita que, mesmo com democracia
interna, pode ocorrer de a comunidade acadêmica não se importar com os
problemas sociais – que, para ele, devem ser os maiores alvos de estudo
do ensino superior. De acordo com Buarque, a universidade brasileira se
tornou “burocratizada”, com integrantes que pensam somente em seus
próprios interesses, fazendo uso dela como escada para superar as
barreiras da desigualdade social. Para ele, o papel da instituição não é
só superá-las – mestres e alunos devem servir ao pais.
Antes de ser governador do Distrito
Federal em 1995, ministro da Educação do governo Lula, entre 2003 e
2004, e candidato à presidência da República em 2006, Buarque ocupou a
cadeira da reitoria da UnB entre 1985 e 1989. Isso ocorreu na
redemocratização da instituição cujo projeto de ensino, elaborado pelos
educadores Anísio Teixeira e Darcy Ribeiro, fora destruído durante o
regime militar, período em que a universidade acabou ocupada pelo
Exército, por ser considerada um centro de formação subversiva.
Buarque ficou conhecido em círculos
acadêmicos de todo o mundo por conta de sua gestão na UnB. Além de
ampliar a infraestrutura e o número de vagas e cursos, ele criou núcleos
temáticos que abordavam conflitos sociais do Brasil de maneira
multidisciplinar. Alunos de arquitetura passaram a estudar problemas de
moradia e trabalhar nos mutirões dos movimentos socais, enquanto
estudantes de medicina passaram a prestar atendimento em comunidades
menos favorecidas, entre outras inciativas.
Ele é um obcecado por educação. Quando
governava o DF, implantou o programa Bolsa Escola, que seria
praticamente reproduzido em escala nacional por Fernando Henrique
Cardoso (PSDB), em seu segundo mandato. Buarque também é quem segura a
bandeira da federalização da educação e é um dos autores brasileiros que
mais escreve sobre a relação entre democracia e universidade.
No artigo “Universidade e Democracia”,
ele aponta como a universidade fez o conhecimento ultrapassar as
barreiras dos conventos na Idade Média. Mas ao passo que historicamente
democratizou o conhecimento, neste novo milênio, segundo ele, a
universidade está servindo de ferramenta antidemocrática, “no ponto de
vista social”, o que nada tem a ver com eleição direta para reitores.
Para ele, a ciência e a tecnologia que o ensino superior produz serve
aos ricos e à ampliação da desigualdade social. Em vez de derrubar
privilégios, a universidade está mantendo-os.
Em entrevista à RBA,
Buarque fala sobre a crise atual da Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo (PUC-SP). Estudantes, funcionários e professores entraram em
greve, num movimento chamado “Democracia na PUC-SP”. Eles protestam
contra a atitude do grão-chanceler da universidade, o cardeal Dom Odilo
Pedro Scherer, de nomear uma reitora que não foi eleita com a maioria
dos votos da comunidade acadêmica. No regimento da PUC-SP, o cardeal,
que é o presidente da Fundação São Paulo, sua mantenedora, escolhe o
reitor a partir de uma lista tríplice encaminhada pela comunidade.
Tradicionalmente, o grão-chanceler aponta o nome mais votado. Dessa vez,
contudo, esse princípio não foi seguido, e ele escolheu a menos votada.
Confira a entrevista:
Qual é a importância da eleição direta para as reitorias nas universidades?
Vou responder. Mas antes tenho que fazer
uma consideração para você. Ela é necessária, mas não permanentemente. A
eleição direta é absolutamente necessária no atual momento da história
do Brasil e da história da universidade brasileira. Por quê? Porque
eleição direta permite o debate da comunidade sobre qual universidade se
deve construir daqui pra frente. Nossas universidades não estão
prontas. Têm universidades com mil anos, com 500, 400, que já se
consolidaram, em países cuja democracia está consolidada, sem apartheid
social. Nosso país tem desigualdade, tem uma sociedade com quase duas
castas e tem universidades muito jovens – nenhuma tem cem anos ainda. E
em países como o nosso, é preciso fazer uma reorientação do projeto da
universidade. A eleição direta ajuda nisso.
Quando ela não será mais necessária?
Espero que dentro de algumas décadas,
não muitas, uns 20 anos, a gente já tenha encontrado esse projeto. E aí
não vai mais ser necessária a eleição direta. A gente poderá inclusive
chegar ao ponto de fazer como as universidades americanas. Elas buscam
dirigentes no mercado. Publicam um anúncio, dizendo que querem contratar
um dirigente, e selecionam. Mas por enquanto a eleição direta é
necessária pra promover o debate na comunidade sobre que tipo de
universidade a gente quer. Posso concluir minha resposta ou tem outras
perguntas?
Fique à vontade.
Vou continuar. Dito isso, quero dizer
que, lamentavelmente, nas últimas eleições de reitores, que acompanhei,
perdeu-se o debate sobre o projeto que se deseja da universidade. O
debate ficou muito corporativizado. As pessoas estão votando, levando em
consideração o que interessa mais ao professor, ao aluno ou ao
funcionário, a quem oferece mais benefícios para cada um desses. Isso
quebrou a razão que justifica a eleição direta, que é a questão de qual é
a universidade que queremos, e não quais os benefícios para cada qual
desses grupos. Durante as eleições, não tem mais esse negócio. Ninguém
mais discute o que desejamos da universidade. Um tema a se debater, por
exemplo, é como democratizá-la.
O que é democracia na universidade?
Democratizar a universidade não é fazer
com que a sua comunidade tenha o controle dela. Democratizar a
universidade é fazer com que ela sirva aos interesses públicos, do país,
como instituição, e das populações carentes, como propósito. O
propósito de uma universidade ser democrática não é necessariamente o
reitor ser eleito, é o currículo do curso de medicina, por exemplo, ter
um compromisso com a saúde pública. É o compromisso dos formados em
economia entenderem os problemas específicos do Brasil, entenderem e se
preocuparem em como reduzir a pobreza e não só aumentar a riqueza, como
se faz nos países que já são ricos. Então, democratizar a universidade é
fazê-la formar pessoas que vão ter um papel fundamental na mudança da
sociedade brasileira. Costumo dizer que o que faz uma universidade
elitista não é o estacionamento dela ter muitos carros de rico, é o fato
de que os que se formam nela trabalham para servir aos ricos. Uma
universidade que tenha um filho de rico estudando medicina para
trabalhar no SUS é mais democrática do que uma universidade que tenha um
filho de pobre estudando para servir aos ricos.
Em um artigo, o senhor comenta que a universidade pode ser democrática, mas burocrática. É isso que o senhor queria dizer?
São duas coisas diferentes. Uma
universidade pode ser democrática e corporativa no sentido de que ouve
apenas a comunidade, e não ao país inteiro. Essa é uma contradição. Mas
tem outra: ela pode ser democrática e elitista, do ponto de vista do
conteúdo, da formação dos seus alunos. São duas coisas diferentes. O
corporativismo impede-nos de ouvir o que o país deseja. Isso é ruim. Mas
o elitismo impede que a universidade sirva ao conjunto da sociedade.
Ela é estruturada para servir à reprodução do atual sistema de
desigualdade.
Democracia interna não pressupõe
democracia externa? Não é imprescindível que a universidade tenha uma
gestão democrática interna da universidade, com eleição direta para
reitor, para cumprir um papel democrático com a sociedade?
Nem sempre. A gestão democrática interna
pode ser alienada em relação aos interesses do povo. Pode ser uma
democracia corporativa. Seria imprescindível, se nós tivéssemos feito
uma revolução no Brasil, e o Estado representasse, de fato, a população
pobre. Mas não é o caso. Nossa estrutura política é comprometida com os
interesses da minoria privilegiada. Qual é a vantagem da eleição direta?
E qual é a necessidade? É o fato de que, com ela, debate-se o futuro da
universidade. Fora dela, não se tem uma visão clara do que se quer com a
universidade, então vamos debater dentro. Por isso, é importante que o
reitor escolhido tenha passado por uma série de debates, um processo de
contestações e de análise dos alunos. Mas pode ser – e acontece – que se
escolhem reitores, administrações e projetos de universidade sem
nenhuma preocupação com os que estão fora dela. Tem acontecido
ultimamente, e isso é muito preocupante. A eleição direta não é para que
quem está dentro dela ordene-a em seu benefício. A eleição direta é
para que quem está dentro dela reflita, pense em como a universidade
pode servir ao país.
No caso da PUC-SP, a comunidade
estudantil acusa a Igreja de querer intervir na orientação ideológica da
universidade. O grão-chanceler, Dom Odilo Pedro Scherer, tampouco
esconde sua intenção. A influência da Igreja pode impedir que a
universidade seja democrática?
Nós estamos cheios de mosteiros
democráticos, em que sua comunidade elege o abade, no nosso caso, o
reitor, mas a universidade é fechada, não olha pra fora, não ouve a
população, não pergunta como será o futuro e forma profissionais que,
daqui a dez anos, estarão completamente obsoletos. Então, o que faz uma
coisa ser mosteiro não é a influência da mantenedora, não. É o projeto
que a universidade tem. Mas, de novo, eu não sei o que está acontecendo
na PUC-SP direito. De qualquer maneira, tendo a querer que se nomeie o
primeiro, o mais votado. Aliás, defendo que se eleja só um, pelo menos
por enquanto, como eu disse. Daqui a dez, 20 anos, quando a universidade
tiver encontrado seu rumo e o Brasil saber que tipo de desenvolvimento
quer, aí a gente não vai mais precisar de eleição direta, não. Talvez,
nem precise de eleição.
Mas a PUC-SP é uma entidade privada? Ela deve ser democrática, mesmo assim?
Acho que toda universidade deve ser
pública, o que não quer dizer estatal. Tem universidade federal que é de
interesse privado, não serve ao público. E há universidades e
faculdades particulares, com donos, que o fazem. Um curso de medicina,
em uma faculdade particular, que forma médicos para o SUS, é público,
sobretudo se a gente consegue que o governo faça o que deve: pagar a
mensalidade desses alunos. Toda faculdade que forma professor com
qualidade é pública, porque o país precisa de professor
desesperadamente. Eu defendo que a universidade pública, inclusive as
estatais, para serem públicas, devem ter gratuitas apenas nos cursos que
o país precisa. O país precisa de professor, de médico, de enfermeiro,
mas nesse momento, com toda franqueza, estão sobrando advogados. Então,
não devia ser gratuito um curso de uma profissão que está sobrando. É um
desperdiço de dinheiro público. Melhor seria colocar esse dinheiro na
educação de base.
Em 2008, a PUC-SP tinha uma
dívida de R$ 300 milhões. Hoje, não sabemos o tamanho do débito, mas
sabe-se que há desafios administrativos. Alguns estudantes da PUC-SP
afirmam que o projeto de sua mantenedora é transformá-la em uma empresa,
embora o próprio cardeal tenha afirmado não esperar que a instituição
sirva exclusivamente ao mercado. Há problemas, se as universidades
funcionarem como empresas?
Se for uma empresa que trabalha só para o
imediato, a formar profissionais para o mercado de hoje, vai
prejudicar, porque a universidade é feita para pensar também a longo
prazo. Se ela for uma empresa que só admite alunos ricos, seria absurdo.
Mas se você chama de “empresa” uma gestão eficiente, é positivo. Até
porque, veja bem, se há dívida, tem de pagar mesmo. Ou aumenta a
mensalidade, que não vai ser bom, ou reduz custos, que às vezes não é
bom, ou entrega isso ao Estado. Quando um banco vai quebrar, o governo,
imediatamente, assume-o, não deixa-o quebrar. Por que vamos deixar uma
universidade quebrar? Mas quando quando o governo intervem no banco,
assume o controle do banco, então teria de assumir o controle da
universidade também, dizendo o que espera dela e colocando a serviço do
público.
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