As pessoas que optam pela carreira de professor não são derrotadas. Pelo contrário, são profundamente idealistas e querem mudar o mundo, mudando a vida de seus alunos, mostra pesquisa em VEJA desta semana
Fonte: Revista Veja
É impressionante
como sabemos pouco sobre os principais atores do nosso sistema
educacional, os professores. Claro, se você acredita na maioria das
notícias e artigos veiculados sobre eles, já deve ter um quadro perfeito
formado na cabeça: os professores são desmotivados porque ganham pouco,
precisam trabalhar em muitas escolas para conseguir pagar as contas do
fim do mês.
O sujeito
se torna professor, no Brasil, por falta de opção, já que não consegue
entrar em outros cursos superiores. Portanto, já chega à carreira
desmotivado, e, ao deparar com o desprezo da sociedade e seus
governantes, desiste da profissão e só permanece nela por não ter
alternativa. Essa é a versão propalada aos quatro ventos. Mas eu
gostaria que você, dileto leitor, considerasse uma hipótese distinta. E
para isso não quero usar a minha opinião, mas dar voz aos próprios
professores. Os dados que vêm a seguir são extraídos de questionários
respondidos por professores da rede pública brasileira, em um caso para
compor um “Perfil do Professor Brasileiro” da Unesco, em outro em
pesquisa Ibope para a Fundação Victor Civita e, finalmente, na Prova
Brasil de 2009 (a última com microdados disponíveis. A íntegra dos três
pode ser encontrada em twitter.com/gioschpe).
Comecemos
pelo início. Não é verdade que os professores caiam de paraquedas na
carreira. O acaso motivou a entrada de só 8% dos mestres, e só 2% foi
dar aula por não conseguir outro emprego. Sessenta e três por cento dos
docentes têm inclusive outros membros da família na profissão.
Perguntados sobre a motivação para exercerem a carreira, 53% dizem que é
por “amor à profissão” e outros 14% apontam ser para “contribuir para
uma sociedade melhor”. Só 15% citam motivos que podem ser interpretados
como oportunistas ou indiferentes à função social da profissão (9%
mencionam “realização profissional” e 6%, “salário/benefícios
oferecidos”). O professor não tem uma má percepção da sua profissão:
81% concordam que são “muito importantes para a sociedade” e 78% dizem
ter orgulho de ser professor(a).
As pessoas
que optam pela carreira de professor não são derrotadas. Pelo contrário,
são profundamente idealistas. Querem mudar o mundo, mudando a vida de
seus alunos. Quase três quartos dos professores (72%) acham que uma
das finalidades mais importantes da educação é “formar cidadãos
conscientes”. Nove entre dez professores concordam que “o professor deve
desenvolver a consciência social e política das novas gerações”. Apenas
45% acreditam que “o professor deve evitar toda forma de militância e
compromisso ideológico em sala de aula”.
Esse jovem
idealista então vai para a universidade estudar pedagogia ou
licenciatura na área que lhe interessa (falo sobre esses cursos em
breve). Depois começa a trabalhar.
As
condições objetivas de sua carreira são satisfatórias. A ideia de que o
professor precisa correr de um lado para o outro, acumulando escolas e
horas insanas de trabalho, não resiste à apuração dos fatos. Quase seis
em cada dez professores (57%) trabalham em apenas uma escola. Em três ou
mais escolas, só 6% do total. Um terço dos professores dá até trinta
horas de aula por semana. Vinte e oito por cento lecionam quarenta horas
(a carga normal do trabalhador brasileiro) e só um quarto dos
professores tem jornada acima de quarenta horas por semana. Dois terços
dos professores têm estabilidade no emprego -- é praticamente impossível
demiti-los.
Felizmente,
casos de violência na escola são menos comuns do que a leitura de
jornais nos faria crer: 10% dos professores se disseram vítimas de
agressão física no último ano. Por tudo isso, a sensação geral dos
professores com sua carreira é de satisfação. Quase dois terços (63%)
estão mais ou igualmente satisfeitos com a profissão quando
entrevistados do que no início de sua carreira. O grau de satisfação
médio do professor, de zero a 10, é de 7,9. Só 10% dizem querer
abandonar a carreira.
Essa
satisfação é curiosa, porque os professores estão falhando na sua tarefa
mais simples, que é transmitir conhecimentos e desenvolver as
capacidades cognitivas de seus alunos. Não sou eu nem os testes
nacionais e internacionais de educação que atestamos isso: são os
próprios professores. Só 32% deles concordariam em dizer “meus alunos
aprendem de fato”. Dois
terços dos professores admitem que só conseguem desenvolver entre 40% e
80% do conteúdo previsto no ano. Só um terço coloca esse patamar acima
de 80%. Sintomaticamente, o questionário do MEC que pergunta sobre esse
desempenho nem inclui a possibilidade de o professor ter desenvolvido
mais conteúdo que o previsto. O que explica esse insucesso?
Um dos principais vilões é identificado pelos próprios professores: seus cursos universitários. Só 34% dos professores acreditam que sua formação está totalmente adequada à realidade do aluno. Nossas
faculdades de formação de professores estão mais preocupadas em agradar
ao pendor idealista de seus alunos do que em satisfazer suas
necessidades técnicas. São cursos profundamente ideo-logizados e
teóricos, descolados da realidade de uma sala de aula média brasileira.
Então se dá
o momento-chave para entendermos nosso sistema educacional: o professor
sai da universidade, passa em um concurso, chega à sala de aula e, na
maioria dos casos, fracassa. Seus alunos não aprendem. Esse professor
poderia entrar em crise, poderia buscar ajuda, poderia voltar a estudar,
poderia ter planos de apoio de sua Secretaria de Educação. Mas nada
disso costuma acontecer, porque não há sanção ao professor ineficaz, nem
incentivo ao professor obstinado.
O professor
que fracassa continuará recebendo seu salário, pois tem estabilidade.
Seguirá, inclusive, sendo promovido, pois na maioria das redes a
promoção se dá por tempo de serviço ou titulação, não por mérito. Esse
professor não será nem incomodado: um dos pilares de grande parte de
nossas redes é a autonomia da escola, a ideia de que ninguém pode dizer
ao professor o que ou como ensinar. Pais e alunos tampouco costumam se
manifestar: confundem uma escola limpa, bonita, que oferece merenda e
uniforme com educação de qualidade. O professor pode até faltar ao
trabalho sem medo de sanções. Estudo recente sobre a rede estadual de
São Paulo mostrou que o professor médio falta em dezoito dos 200 dias
letivos.
É um índice
de falta muito superior até mesmo ao dos outros servidores públicos,
que já é maior que na iniciativa privada. Depois de uma investigação de
meses com o repórter Rafael Foltram junto às secretarias estaduais,
descobrimos que há situações muito piores, com faltas entre 11% e 15%
dos dias letivos. E isso é certamente uma subestimação, pois a maioria
das secretarias não fica sabendo quando um professor se ausenta durante
parte de um dia; algumas só são notificadas em faltas de três dias ou
mais. O professor deixa de se preocupar em investir em si mesmo: 74%
veem TV todos os dias, mas só 12% leem livros de ficção e 17% participam
habitualmente de seminários de atualização.
Mesmo nesse
sistema tão permissivo e ineficiente, persiste um problema: os
professores sabem que seus alunos não estão aprendendo. E é
extraordinariamente difícil a qualquer pessoa continuar em uma carreira,
indo ao trabalho todos os dias, sabendo-se um fracasso. Muitos
profissionais sucumbem à depressão e ao esgotamento. Alguns abandonam a
carreira. Mas a maioria resolve essa dissonância cognitiva (eu sou um
bom professor, meu aluno não aprende) de duas maneiras: culpando o aluno
e redefinindo o “sucesso”.
Alfabetizar
e ensinar a tabuada, por exemplo, deixam de ser medições válidas de
êxito e passam a ser vistos como “reducionismo”. O importante é a
libertação do espírito, e isso qualquer um pode definir da maneira que
lhe gerar conforto, no recôndito de sua alma. Já a culpabilização do
aluno e de sua família é mais ostensiva. Eis as explicações dos
professores para as dificuldades de aprendizagem dos alunos: 94% apontam
a “falta de assistência e acompanhamento da família”, 89% citam o
“desinteresse e a falta de esforço do aluno” e 84% dizem ser
“decorrentes do meio em que o aluno vive”.
Nossos
alunos, especialmente os pobres, são massacrados por um mar de descrença
e descompromisso do sistema que a sociedade financia para educá-los. Só
7% dos professores acreditam que quase todos os seus alunos entrarão na
universidade.
Esses
professores criaram uma leitura de mundo à parte e completa para se
blindarem contra o próprio insucesso. Qualquer crítica ou cobrança só
pode vir de algum celerado que pretende privatizar a escola ou quer
“alienar” o alunado. Pesquisas não são confiáveis, números mentem,
estatísticas desumanizam: os professores não precisam de ajuda, muito
menos de interferência. Segundo eles, o exercício da docência é algo tão
particular, hermético e incompreensível que não pode se sujeitar aos
métodos investigativos que analisam todas as outras áreas do
conhecimento humano: só quem vive a mesma situação é que pode falar
alguma coisa.
Na área da
saúde, seria ridículo dizer que um pesquisador de laboratório não pode
criar um remédio porque nunca atendeu pacientes com aquela doença ou que
um médico só poderia realmente tratar do doente se tivesse passado um
tempo considerável internado no hospital. Na educação brasileira, o
discurso de que os “de fora” não podem se meter é aceito sem hesitação.
É por isso
que me parecem disparatadas as iniciativas que querem usar de aumentos
orçamentários para “recuperar a dignidade do magistério” ou melhorar a
educação dobrando os salários dos profissionais da área. A maioria dos
professores não está com a dignidade abalada. Está satisfeita,
acomodada.
O professor
não se tornará um profissional mais exitoso se não tiver uma profunda
melhora de preparo, por mais que seu salário seja aumentado. Se
compararmos nosso alto gasto em educação com o baixo resultado que o
sistema educacional entrega ao país, o surpreendente é que a autoestima
dos educadores esteja tão alta. Ao lidar com o “luto” do nosso insucesso
educacional, a maioria dos professores ainda está na fase da negação (a
culpa é dos alunos e pais) e raiva (contra o mundo neoliberal, a falta
de apoio etc.). Esse mecanismo de defesa tem uma utilidade importante:
faz com que o professor possa prosseguir em sua carreira, sem sucumbir
ao desespero que fatalmente adviria se percebesse a dimensão de seu
insucesso. Mas, para o país, cobra um preço alto.
Primeiro,
porque aliena os professores bons e aqueles que ainda não são bons, mas
são comprometidos, batalhadores. É difícil visitar uma escola em que não
haja uma tensão surda entre a minoria comprometida e a maioria
acomodada, e os competentes não querem trabalhar em um ambiente de
inércia. A reação histérica de muitos professores à página no Facebook
da estudante Isadora Faber (que chegou a ser acusada criminalmente de
calúnia e difamação por uma professora, o que levou a menina de 13 anos a
ter de prestar depoimento em delegacia) é demonstrativa da total
intransigência desses profissionais com qualquer denúncia que abale o
status quo. Em segundo lugar, e mais importante, essa resistência impede
os próprios professores de procurar as ferramentas que poderiam
melhorar o seu desempenho acadêmico. Como sabe qualquer terapeuta, só é
possível ajudar quem quer ser ajudado.
A sociedade
brasileira não pode retirar os maus professores do cargo, pois a
maioria tem estabilidade no emprego. Mas tampouco pode tolerar o seu
imobilismo. As mirabolantes e simplistas soluções orçamentárias não
resolvem esse problema tão difícil: como fazer que professores
dessensibilizados por anos ou décadas de cinismo voltem a ter a
esperança e o brilho nos olhos que os fizeram optar por essa linda
profissão.
Blog rafaelrag com o professor Damásio
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