sexta-feira, 3 de julho de 2015

Quatro em dez professores fazem jornada extra para compor renda

                               Professoras de Alagoa Grande: Socorro, Terezinha e Marilene.
Andrea Almeida, 35, dividia-se entre as atividades de manicure e professora de matemática em uma rede municipal do interior do Maranhão até ser aprovada em um concurso estadual –agora, concilia os dois turnos de aula.

Kelly Naves, 40, chegou a trabalhar por três turnos na educação em Belo Horizonte. Ainda hoje, deixa de almoçar enquanto gasta cerca de uma hora para ir de uma escola a outra na capital mineira.

Moradores de diferentes pontos do país, os três exemplos fazem parte de uma estatística de professores que têm recorrido à jornada dupla (ou até tripla) de trabalho. E sentem os efeitos disso.

Hoje, quatro em cada dez docentes da rede básica no país, ou 41% do total, fazem atividades dentro e fora da educação para complementar a renda. Desse universo, 10% chegam a atuar em atividades fora da educação.

“Se eu tiver que dar uma lista, é mais fácil dizer quem não vive disso [renda extra]”, afirma Kassyus, que cresceu ajudando a mãe, também professora, a vender bolos para completar a renda.

Os dados, tabulados pela organização Todos pela Educação a pedido da Folha, são de questionário federal preenchido por 225 mil professores da rede pública do 5º e 9º ano do ensino fundamental, amostra que compreende os principais anos dessa etapa de ensino. Ao todo, o fundamental reúne 1,4 milhão de professores.

Em 16 Estados, o índice supera a média nacional. Rio Grande do Norte (55%) e Roraima (54%) lideram. Na outra ponta, estão Tocantins e Distrito Federal, com 22,6% e 12,7%, respectivamente.

Em São Paulo, cerca de 41% dos professores do ensino fundamental aderem a atividades extras.
O levantamento mostra ainda que cerca de 30% dos professores que atuam em uma escola por 40 horas ou mais por semana também arranjam tempo para complementar a renda com outras atividades.

“Em algumas redes, a própria carreira não está desenhada para o professor se fixar na sala de aula”, afirma a coordenadora da Todos pela Educação, Alejandra Velasco.

Para ela, além de trazer dificuldades ao professor, a rotina pode afetar o projeto pedagógico e a qualidade de ensino. “O professor que não participa totalmente da vida da escola vai ter um desapego maior à escola, vai participar menos das decisões.”

Gestores da educação em Estados e municípios reconhecem que a dedicação exclusiva, com jornada de 40 horas semanais, é o ideal para um melhor resultado.

Mas ponderam que essa situação nem sempre é possível. “Do ideal para o real temos várias situações: somos muitas redes municipais, e cada um tem uma forma de contratar”, diz Alessio Costa Lima, presidente da Undime (entidade que reúne dirigentes municipais de educação).

“Vai depender da escola, do número de alunos e de turmas”, completa Eduardo Deschamps, do Consed (Conselho Nacional de Secretários de Educação). “É natural que professores com carga horária mais baixa tenham mais de um trabalho”, diz.

É o caso de Christian Sousa, 35, de Belo Horizonte, que se divide entre aulas de educação física, dança de salão e atividades extras como personal trainer.

Pela primeira atividade, como docente em meio período, recebe R$ 2.200. Com a jornada extra, ele atinge R$ 5.700.

“Se o professor fosse mais valorizado, teria somente tempo para investir na docência, e com certeza as aulas teriam melhor qualidade”, afirma.

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TETO SALARIAL



A atividade extra tem peso importante no orçamento doméstico dos professores: apenas com a docência, 50% dos profissionais recebem valor menor ou igual a R$ 2.035.

Com a jornada adicional, seja em outra rede ou fora da educação, esse percentual diminui para 36%.
Ao mesmo tempo, o número de professores que ganha na faixa acima de R$ 2.035 e até R$ 6.780 sobe de 46% para 58%.
Para Guilherme Prado, da Faculdade de Educação da Unicamp, essa condição degradada de trabalho acaba por repercutir no ingresso de estudantes nos cursos de licenciatura ou no afastamento desses graduandos da sala de aula.

“Em vez de optarem pela docência, vão para outras áreas, que do ponto de vista financeiro são mais rentáveis”, afirma o professor da Unicamp, para quem o problema afeta principalmente áreas de física, química e matemática, com mercados mais amplos.

GREVES PELO PAÍS

Secretários de educação alegam que esse valor, em grande parte, está atrelado a uma jornada parcial de trabalho, inferior a 40 horas semanais.

Os dados, porém, indicam que 34% dos professores com carga horária de 40 horas ou mais ganham até R$ 2.035.

As condições de trabalho e a remuneração do profissional motivaram, neste ano, uma onda de paralisações em diversos Estados do país.

“O quadro que temos é de muita tensão”, afirmou recentemente o secretário de articulação com os sistemas de Ensino do MEC, Binho Marques, diante das greves na rede pública.

Em Alagoas, onde 60% dos professores ganham até R$ 2.000 (é o maior percentual até essa faixa), a categoria ameaça parar as atividades em julho.

“Os salários estão muito aquém da nossa qualificação profissional. Ninguém mais quer ser professor”, afirma Consuelo Correia, presidente do Sinteal, sindicato dos trabalhadores em educação de Alagoas.
“Isso mostra uma baixa valorização da carreira. Estão atraindo pessoas menos qualificadas”, afirma.
Segundo a presidente do sindicato, uma mudança no salário pode não ter efeito imediato, mas tornará a carreira mais atraente.

QUALIDADE DE VIDA

Professores afirmam que a dupla jornada interfere na qualidade de vida e traz impactos para o desempenho em sala de aula.

Kelly Naves, professora da rede pública municipal em Belo Horizonte (de anos iniciais do fundamental e de inglês para outras turmas), lamenta não ter tempo livre para se dedicar a um mestrado, por exemplo.
“Amamos a profissão. Mas o salário é tão baixo que sempre chega o momento em que pensamos em tentar outra atividade. O cansaço é inevitável”, diz.


(Flávia Foreque e Natália Cancian – Folha de S. Paulo)

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