O ponto alto dodebate da Globo foi a participação dos eleitores indecisos. Sem ambições políticas ou artísticas, os indecisos esfregaram na cara dos candidatos perguntas feitas de lugares-comuns, iguais aos lugares onde eles vivem. Injetaram na ficção dos estúdios iluminados a realidade opaca de seus universos sem luz. Suas luzes apagadas expuseram a cegueira do marketing das campanhas.
Debates entre Dilma e Aécio no segundo turno119 fotos98 / 119
24.out.2014 - A presidente Dilma Rousseff (PT), candidata à reeleição, e Aécio Neves, candidato do PSDB à Presidência, se cumprimentam ao chegarem ao estúdio da TV Globo, no Rio de Janeiro, nesta sexta-feira (24), antes do último debate do segundo turno das eleições presidenciais, que acontecem neste domingo (26). No debate, Dilma Rousseff (PT) procurou fazer críticas à gestão de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) para desgastar Aécio Neves (PSDB), que escolheu a corrupção para tentar atingir a adversária.
Ricardo Moraes/Reuters
Selecionados pelo Ibope, os indecisos revelaram que o inferno que habitam fica muito distante do paraíso do horário eleitoral. Nele, tem gente madura “sem empregabilidade”, tem jovem que morre por causa de “uma dívida de dogras de apenas R$ 50”, tem aluno que “deixou a escola para ser chefe do tráfico”, tem bandido que mandou uma família “sair de casa sem poder levar nada”, tem “esgoto a céu aberto”, tem bairro em que “as pessoas perdem o pouco que puderam conquistar” quando chove forte e tem “aluguel que triplicou”.
Os eleitores indecisos “escreveram perguntas sobre 14 temas de interesse geral”, informou William Bonnner na abertura do debate. “Foram selecionadas as 12 questões mais representativas. E aqui, ao vivo, eu vou sortear oito delas.” Bonner explicou que o próprio autor leria a respectiva indagação. Sem improvisos ou acréscimos, sob pena de ter o microfone cortado e ser substituído por outro indeciso que não quebrasse a confiança da Globo.
Os indecisos são seres implacáveis. Inquiridos por eles, Dilma e Aécio ofereceram missangas retóricas, sorrisos e um certo ar de respeito humanista. E os indecisos, proibidos de replicar, olharam para os candidatos com suas feridas expostas e semblantes crispados. Indecisos não têm tempo para cultivar desejos abstratos. Seus objetivos são concretos.
“Meu nome é Elizabeth da Silva Gomes Andrade. Tenho 48 anos e sou dona de casa. A maioria dos bairros próximos de onde eu moro têm esgoto a céu aberto, quando chove, as pessoas perdem um pouco do que puderam conquistar. O que impede, de verdade, os governos resolverem esse problema?”
Com seu rebolado de general de cavalaria, Dilma aproximou-se da eleitora sem candidato. “Elizabeth, uma boa pergunta”, ela disse. Para a Dilma, todas as interrogações de indecisos são boas perguntas. “Eu tenho um compromisso com o futuro, Elizabeth. É acelerar essa questão do tratamento e da coleta de esgoto. Nós estamos colocando, hoje, R$ 76 bilhões em parceria com Estados e municípios.”
Na sucessão de 2010, a Globo já havia incluído os indecisos na coreografia do último debate. Nessa ocasião, coube a Melissa Bonavita, uma operadora de telemarketing do Rio, inquirir Dilma sobre saneamento: “Moro num bairro onde, nas proximidades, tem um valão imenso. Algumas vezes, em épocas de chuva, o valão transborda, provocando doença nas pessoas. O que será feito para melhorar o saneamento no país?”
Eis o que respondera a Dilma de quatro anos atrás: “Melissa, essa é uma das mais importantes questões. Queria te dizer que eu tenho um compromisso, que é resolver de uma vez por todas uma das questões mais graves do Brasil, que é a questão das enchentes, principalmente nas regiões metropolitanas. [...] Vou triplicar os valores investidos em saneamento —tratamento de esgoto e tratamento de água. [...] Vou investir em saneamento porque o Brasil tem de zerar o déficit em saneamento.”
Ou seja, no futuro da presidente sempre cabem todos e cabe tudo, pois o futuro não pode ser apalpado. O tucano José Serra, adversário dela na corrida presidencial de 2010, estava nos estúdios da Globo na noite passada. Deve ter gargalhado em silêncio. Ele criticara Dilma por não eliminar os impostos cobrados das companhias estaduais de saneamento. “O governo federal duplicou os impostos sobre saneamento”, afirmara Serra em 2010. “Isso tira R$ 2 bilhões das companhias estaduais por ano. E diminui os investimentos no setor.”
Aécio Neves, defensor da mesma providência, ecoou Serra na resposta à indecisa. “Elizabeth, eu não vou terceirizar responsabilidades. Presidente, vou cumprir o meu papel. O primeiro deles é desonerar as empresas de saneamento do PIS. A candidata prometeu. E não cumpriu.” Não é difícil perceber por que Elizabeth é uma eleitora indecisa.
Os indecisos não cultivam projetos abstratos. Só concretos. Por exemplo: o projeto de Vera Lúcia Azevedo Simões, 45, professora em Salvador, é obter segurança. “A droga tem dizimado parte dos jovens”, ela disse a Dilma e Aécio. “Muitos morrem antes de completar maioridade. Conheci um jovem do meu bairro que foi morto devido a uma dívida de drogas de apenas R$ 50. Tive um aluno que deixou a escola para ser chefe do tráfico. A caneta como arma, o caderno por lápide. Qual a proposta para melhorar essa realidade?”
Aécio respondeu que fechará as fronteiras do país, para impedir a entrada de drogas e armas. E reiterou a promessa de conceder um estímulo monetário aos jovens que se dispuserem a concluir os estudos. “Eu quero criar o Poupança Jovem, um recurso que é depositado na conta dos alunos do ensino médio que só pode ser sacado ao final do curso para que tenha um estímulo a mais para concluir sua formação. Quanto? O candidato não especificou. Mas, para concorrer com o recrutamento do tráfico, há de ser um bom dinheiro.
Quanto a Dilma, ela disse que, dentro de quatro anos, a indecisa Vera Lúcia será outra pessoa: “Eu vi numa reportagem da Globo News. Dizia que todas as pessoas que participaram do debate de 2010 disseram que melhoraram de vida. Eu quero que também com vocês aqui, com os eleitores indecisos ocorra a mesma coisa. Que vocês, no fim de 2018 cheguem aqui, digam que melhoraram de vida se eu for eleita, ficarei muito feliz.” Há 12 anos no poder, quatro os quais como presidente, Dilma oferece aos indecisos, de novo, um futuro radiante. Mal sabe ela que os indecisoas detestam futuros. Pragmáticos, querem ser convencidos no presente.
Os indecisos se comportam mal, desvirtuam a programação da marquetagem. Num debate em que Dilma jactou-se de presidir um país sob pleno emprego, a cearense Elizabeth Maria Costa Timbó apresentou-se como um ponto for a da curva: “Tenho 55 anos e sou economista. Sou uma pessoa qualificada profissionalmente, mas pelo fato de estar com 55 anos, atualmente me encontro fora do mercado de trabalho formal. Qual a sua proposta para que pessoas maduras tenham sua experiência de trabalho valorizada e possam manter sua empregabilidade?”
Aécio tropeçou no óbvio ao dar uma resposta a Elizabeth: “O país tem que voltar a crescer, nós não temos alternativa, a nossa taxa de investimentos hoje é de 16,5% do PIB, a menor da última década. E eu tenho absoluta convicção: com clareza das propostas, com respeito às regras, respeito às agências reguladoras, com uma política fiscal transparente vamos gerar novos empregos para gente qualificada como você, Elizabeth.” Quer dizer: mandou a indecisa entrar na fila.
“Muito boa a sua pergunta”, interveio Dilma. “Eu não acho que o Brasil não está gerando emprego. O que eu acho, Elizabeth, é que seria interessante que você olhasse entre os vários cursos que têm sido oferecidos, inclusive pelo Senai, que são cursos para pessoas que têm a possibilidade de conseguir um salário e um emprego melhor, se você não acha colocação.” Ou seja: para Dilma, o problema não está no mercado, mas em Elizabeth, que ainda não descobriu as maravilhas de uma reciclagem no Senai.
Pressionando aqui, você chega à integra da transcrição do debate. A conversa com os indecisos vale o desperdício de um pedaço do final de semana. Eles falaram no segundo e no quarto blocos. Na prática, os indecisos transformaram o último debate da temporada eleitoral numa espécie de centro terapêutico para tratar candidatos à Presidência de suas loucuras. Neste domingo, um deles terá alta.
Blog rafaelrag com Josia de Souza
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