Em
passagem dos cinquenta anos do chamado “Golpe Militar” de 1964 muito
tem se falado, escrito, debatido e discutido nas redes sociais, na
imprensa livre e nas universidades. Muito do que tem se dito está
envolto em grande emoção e é marcado por debates acalorados, em sua
maioria com forte viés maniqueísta, onde os defensores da resistência ao
regime de exceção distribuem insultos aos torturadores do antigo regime
autoritário e os defensores da chamada “Revolução de 1964” defende o
indefensável em nome de certa “moralidade” às avessas. Muito pouco se
discute do ponto de vista da análise política, ou seja, da perspectiva
diversa que envolve um período ainda tão próximo e tão marcadamente
violento e excludente politicamente. Foi retrocesso político o que
ocorreu no período entre 1964 e 1985? Não dá para ter dúvidas que sim.
Por outro lado, o que podemos tirar dessa lição? São muitas leituras,
mas pouco debate em torno do desenho das instituições do período somado a
poucos estudos sobre o comportamento dos principais atores políticos
daquela época. É nesse caminho que pretendo tecer algumas linhas.
O
que aconteceu na década de sessenta no mundo no qual o Brasil estava
envolvido? Naquele período a radicalização do conservadorismo provocado
pelo contexto da Guerra Fria influenciou decisivamente no comportamento
dos principais atores políticos que estavam no comando das máquinas
públicas nos diversos regimes políticos, inclusive nos países cêntricos.
Os EUA eram governados por elites conservadoras que temiam o avanço do
comunismo que foi endossado como forma de governo e de sociedade na Ilha
de Cuba. A Revolução Cubana precisava ser estancada em sua evolução
dentro da América Latina. Região esta até então de pouca atenção
dispensada pelos norte-americanos. Contudo, o conservadorismo político
enraizado nos dois partidos políticos majoritários da democracia
estadunidense corroborou para moldar o comportamento dos atores
políticos chefes de governo dos EUA em relação a sua política externa
com os países de seu “quintal”. Ora, Cuba era quintal dos EUA e passava
por mudanças radicais patrocinadas pela principal potência que
rivalizava o poderio hegemônico com os EUA naquele período, a URSS.
Esta, depois de enviar os mísseis em 1962 para a Ilha de Fidel Castro,
demonstrava, desde a Guerra das Coreias no início da década de
cinquenta, que queria fatiar o mundo em esferas de influência tentando
limitar drasticamente a influência norte americana, inclusive na América
Latina. A Operação Condor e os acordos nos bastidores entre os EUA e os
diversos quadros políticos conservadores dos países latino americanos
levaram muitos desses países a executarem mudanças bruscas em seus
regimes políticos, instalando modelos autoritários de governos
limitadores das liberdades individuais em nome da luta contra a “praga”
do comunismo. Esse fator foi uma das variáveis as quais influenciaram no
escalonar da ruptura que vingou no Brasil na década de sessenta e
entrou nas décadas de setenta e oitenta.
Como
era o nosso regime político antes da ruptura autoritária? O Brasil
vivia sob um regime político semidemocrático, ou seja, tínhamos uma
estrutura institucional pluripartidária estável – com treze partidos
políticos disputando os pleitos eleitorais nas três esferas da Federação
– com eleições livres e relativamente limpas com sufrágio limitado (Por
exemplo: nas eleições municipais de 1962 a população eleitoral
brasileira era de 18.496 milhões para uma população de 75.695 milhões, o
que equivalia a 24,5% da população brasileira [Fonte: TSE. Dados
Estatísticos, 1973 apud Lavareda, 1991]). Diferente do que muitos
cientistas sociais afirmam, a democracia representativa brasileira era
robusta com níveis de disputa partidária similar a países de democracias
políticas mais antigas. Não havia, nem de longe (como afirma o atual
Senador da República Pedro Simon), previsões as quais o Brasil
atravessaria um retrocesso institucional em seu modelo de democracia.
Mas, as circunstâncias históricas externas e internas favoreceram a
interrupção da democracia brasileira. A democracia como método de
escolha não era (e não é) suficiente para consolidar um regime político
democrático. Na lacuna desse regime, em suas zonas marrons, foram
criadas as condições para a instalação do regime de exceção em nossas
plagas.
Quais
foram as condições institucionais para a mudança drástica de modelo
político no Brasil? Sabe-se que João Goulart vinha tendo sérias
dificuldades de se legitimar perante o corpo político nacional. Com a
renúncia de Jânio Quadros em 1961 e a instalação do Parlamentarismo em
1963 a força política do ator político Presidente João Goulart fora
fragilizada. Não havia uma leitura do modelo democrático e os partidos
políticos rivalizavam de forma intestinal em seus debates. Seguindo a
linha de tantos cientistas sociais, e daí destaco o professor Gláucio
Soares em seu livro “Democracia Interrompida”, os partidos eram frágeis
do ponto de vista da articulação nos bastidores. Outra tese, esta do
professor Bolívar Lamounier, a estrutura partidária diferia do sistema
eleitoral. Apesar da disputa pelo voto do cidadão se dar numa engenharia
de estabilidade e de disputa pouco fragmentada, nos bastidores dos
partidos políticos existia uma rejeição muito forte ao nome de João
Goulart, somado isto ao anticomunismo implantado como uma verdadeira
“doença” que devia ser exterminada, ao exemplo de Cuba, os civis, em sua
maioria, se mostravam pouco articulados naquele processo. Dois atores
políticos civis foram fundamentais: primeiro, Magalhães Pinto,
governador de Minas Gerais, e de outro lado, Carlos Lacerda, governador
do Estado da Guanabara, foram atores que apoiaram uma solução armada ao
espectro ameaçador do comunismo latino-americano.
A
instalação do regime de exceção no Brasil foi vista por alguns
conservadores como a manutenção da democracia representativa e da
economia capitalista. Só que eles não contavam que as Forças Armadas, ao
chegar novamente ao poder, dificilmente iria querer soltar a espada do
poder de suas mãos. Instalado o regime, as cassações, o fechamento do
Congresso, a instalação de governos estaduais sob intervenção, atos
institucionais que cessaram as liberdades civis e políticas, o Brasil
entrou num período dos mais atrasados do ponto de vista político e
social de sua história.
No
início até 1973, com o “milagre econômico”, o crescimento estrutural
provocado por uma política de substituição de importações com
endividamento externo em proporções astronômicas, o legado do regime
militar (da ruptura democrática) foi de maiores níveis de desigualdade
de renda e social, dívida externa estratosférica, inflação de mais de
200% ao ano e um desgaste político e social nunca antes visto na
história do país. A Ditadura Militar, ou Regime Autoritário, sem entrar
em peculiaridades conceituais, deixou uma dívida social e econômica
muito grande para a democracia em seu ressurgimento a partir de 1984 com
os movimentos sociais das Diretas!
O
processo de descompressão tinha começado dez anos antes, em 1974, no
governo do General Ernesto Geisel. Descompressão esta em meio a uma
disputa intestinal entre os chamados “linha dura” com os moderados de
dentro do regime. Dos dois lados tinham civis e militares. A morte do
jornalista Wladimir Herzog dentro dos porões do DOI-CODI de São Paulo
aterrorizou até o mais insensível analista do período. A imagem do
Herzog pendurado por uma corda a uma altura de um metro e meio, com as
pernas curvas, chocou a opinião pública nacional e, sobretudo,
internacional. O próprio presidente pressionou para saber o que tinha
realmente ocorrido, e a ala conservadora vinha mostrando desequilíbrio o
que fortaleceu os movimentos em prol do retorno da normalidade
democrática. A Lei de Anistia foi a resposta do governo seguinte, do
General Figueiredo. Anistiando todos aqueles que pegaram em armas contra
o regime e, por sua vez, “perdoando” os excessos dos agentes do estado
que praticaram torturas das mais desumanas.
Período
violento, o regime militar foi mais violento que a nossa atual
semidemocracia? A resposta é, infelizmente, não. Do ponto de vista da
violência política, sim, o regime foi o mais violento, até por que não
se tem conhecimento, desde 1985, de prisões por divergências políticas
em nosso país. Contudo, do ponto de vista da violência urbana e rural, o
Brasil se tornou bem mais violento. Os crimes de tortura e assassinatos
de ontem são ofuscados pela criminalidade violenta que grassa as
principais cidades do país em um movimento de ascendente que coloca em
xeque a própria democracia. Até que ponto uma democracia suporta índices
de homicídios tão elevados como os encontrado em suas regiões, estados e
municípios? Nós não temos zonas marrons, a grande parte das cidades
mais importantes, mais populosas, com os maiores colégios eleitorais,
com o maior dinamismo econômico, são também os locais mais violentos, o
que fragiliza o estado de direito na Nova República. Uma democracia não
se sustenta com violações constantes dos direitos civis.
Superamos
o regime militar de vez? Acredito que sim. Dificilmente teremos um
regime político com aquele formato. As Forças Armadas saíram de vez do
quadro político brasileiro? Não. As FFAA continuam a demandar poder.
Dentro do Ministério da Defesa, na Agência Brasileira de Inteligência,
no modelo de segurança pública (militarizado) e até como garantes da lei
e da ordem democráticas (artigo 142 da Constituição de 1988). As FFAA
saíram do governo, mas mantém poder e estão de vigília em relação à
manutenção da lei e da ordem. É só ver quem está no comando da ocupação
da Favela da Maré no Rio de Janeiro. Num momento de grandes
manifestações cobrando do governo por políticas públicas de qualidade, é
importante o governo de plantão ter as Forças Armadas ao seu lado.
José Maria Nóbrega Jr é professor da UFCG
Blog rafaelrag com o portal da UFCG
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