Hoje o dia não amanheceu como em outros sábados.
Acordei sem vontade de sair da cama, passei da hora de ir para a feira, não tive vontade de fazer o café, não me concentrava no que estava fazendo...alguma coisa me dizia que o dia seria pesado.
Ao meio-dia, quando finalmente sai para abastecer o carro, ainda no posto de combustíveis recebo a ligação de meu primo-irmão, Francivaldo (Neguinho), me relatando a passagem deste cidadão alto de camisa branca, que foi o pai que não tive e me ensinou parte do que sei.
Seu nome, José Vilar do Nascimento, mas todos o conheciam na pequena Santa Terezinha, interior da Paraíba, como Zé Novo. Era Zé Novo e ponto.
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Homem simples, que desde cedo teve que entrar na lida do campo para ajudar a criar os irmãos, casou cedo, criou onze filhos e, na pequena casa de taipa, ainda abrigou esta décima segunda boca, me criando como se filho fosse.
Sempre foi trabalhador do campo, até se aposentar.
Nas terras onde trabalhou, era o chefe dos vaqueiros, acordando às três horas da madrugada para ir ao curral, debaixo de chuva, à luz do candeeiro de querosene, tirar leite de quase uma centena de vacas. Eu ainda guri ia junto para colocar os bezerros para dentro do curral e, espertamente já levava meu copo de alumínio, com uma colher de açúcar, para tomar o leite espumado no começo da ordenha.
Eram umas três horas de ordenha, até o último entregador de leite sair em sua bicicleta, com o leite pela boca do balde, rumo à cidade de Patos.
Depois Zé Novo levava o gado para o pasto, colocava a pareia de boi manso no carro de boi e ia cortar capim na beira do riacho, para depois triturar na forrageira e alimentar as vacas leiteiras quando retornassem do campo.
Eu ia montado no paiol de capim, em cima do carro de boi, tangendo a pereia de boi manso.
Quando voltava ao curral, era hora de lavar os baldes de leite e trazer água - nas ancoretas ou nos galões - para o consumo da casa, no açude cujo sangrador passava no oitão da casa . Eu ia ajudar e, como criança, tomar banho e aprender a nadar com os baldes emborcados servindo de bóia. Na volta trazia meio galão de água - que derramava parte no caminho - ou vinha em cima dos jumentos, montado nas ancoretas.
No resto do dia era o trabalho de consertar cercas, tratar de bezerros, amansar cavalos, cortar lenha, torrar café, moer milho para fazer o cuscuz, debulhar ou bater feijão, pilar o arroz para tirar a casca, colocar leite para coalhar...até a hora de ir buscar o gado, dar água, separar os bezerros, prender nos currais e ir colocar querosene no candeeiro para o dia seguinte.
Além de vaqueiro, Zé Novo era quase veterinário. Verdadeiro cuidador dos animais, aplicando injeções, fazendo partos, castrando, realizando pequenas cirurgias, marcando o gado e até abatendo quando o proprietário precisava levar para a feira a carne in natura. Aprendi muito e desse aprendizado veio o interesse em fazer um curso de Técnico Agrícola.
Quando faltava a mistura no prato, ele pegava a espingarda, entrava na serra e trazia a caça para alimentar as bocas; se a caça não facilitasse, entrava no açude e arrastava a traíra pelos dentes. Literalmente.
Para vestir a fiarada no São João, plantava nas horas de folga, trabalhava na roça dos vizinhos, colhia algodão, juntava oiticica, fazia carvoeiras, tirava mel de abelha italiana, colocava o fojo para pegar preá... dava um jeito e a roupa das festas chegava.
Se divertia no baralho ou no arrasta pé, raramente tomava uma pinga e gostava mesmo era do mato.
Como vaqueiro, depois de algumas pancadas no mato, correndo atrás de boi fujão no meio das juremas, veio a fraturar a clavícula, e com a idade teve que reduzir a jornada, vindo morar na cidade. Foi outra caminhada que merece outro relato, mas, depois de criar 11 filhos - sem contar comigo - a prole hoje conta com uma ruma de netos, bisnetos e tataranetos.
Estive com ele no mês passado, já acamado, com reduzidos movimentos, mas ainda sorridente ao ouvir uma boa piada, e mesmo a família fazendo de tudo e cuidando como se cuida de um bebê, vez por outra dava coices quando não gostava de algo.
Hoje o sábado, que começou sem o brilho costumeiro, vai se encerrando com esse sentimento de perda e já de saudade.
Nesta foto - em que um sertanejo vem prá capital e fica fora de seu habitat - ele e minha querida segunda mãe, Francisca Alves, fizeram questão de estar presentes por ocasião de minha colação de grau no curso de Direito. Era o primeiro filho, em gerações, a concluir um curso superior.
Agora eu estarei presente. Irei me despedir desta parte de minha vida, mas guardarei a imagem dos dias de cheia do riacho, colheita do feijão verde, banho dos cavalos e do sorriso dele quando tirava uma boa jogada de ases na mão.
Segue na luz, Zé Novo. Um dia nos encontraremos.
Blog rafaelrag
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