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domingo, 31 de dezembro de 2023

Especial: livros viram lojas virtuais; inteligência artificial dominou 2023



Se os livros viveram anos de turbilhão e, depois da pandemia, navegaram céu de brigadeiro, agora parecem aterrissar em um novo mundo que pode ser tão admirável quanto alarmante, já que se consolidam de vez mudanças de hábitos dos leitores e do funcionamento da indústria.

As editoras têm lidado com papel mais caro, subido seus exemplares de preço e, pela primeira vez na história, observado o faturamento das livrarias virtuais superar o das físicas —ou seja, os brasileiros gastam mais com livros na internet do que indo a pé até a simpática loja do bairro.

É a culminação de uma mudança de comportamento que vem lá de atrás e levou à derrocada das redes Saraiva e Cultura, soterradas por novas pás de cal este ano. Nessa reacomodação, provavelmente 2023 vai vender ao todo menos exemplares que 2022, num panorama cada vez mais dominado pela Amazon, que reconhece ter tido um ano e tanto.

Segundo pesquisa da Nielsen, duas de cada três compras virtuais de livros acontecem na gigante de Jeff Bezos. Ricardo Perez, gerente brasileiro da área na empresa, demonstrou empolgação ao falar da estratégia de eventos promocionais como a Book Friday, que cresceu dois dígitos em relação ao pico de vendas anterior da empresa, segundo ele.

O problema, constantemente reforçado pela indústria, é como os descontos oferecidos nessas ações achatam o valor do livro. Mas a regulação legislativa de preços defendida nos bastidores ainda há anos não chegou nem perto de sair do papel.

“Agora temos o desafio de aumentar o número de leitores no Brasil, tanto em formato físico quanto digital e áudio”, reforça Perez, da Amazon, lembrando a entrada da Audible no país, a aposta mais robusta num mercado de audiolivros que, até aqui, engatinha.

Aliás, não houve rodinha ou mesa de bar em que não se falou sobre inteligência artificial, outro fator que estremeceu a indústria do livro —e chegou até ao Jabuti, principal prêmio literário do país, que indicou como finalista, sem saber, uma obra com ilustrações feitas por ferramenta de IA.

                                     Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil

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Ninguém acha que os leitores vão passar a comprar só histórias escritas por robôs, mas a tecnologia tem deixado em alerta escritores e artistas gráficos, que podem ter seus direitos autorais violados em massa, e profissionais como tradutores, revisores e ilustradores, que temem ser substituídos no mercado por sistemas tecnológicos mais baratos.

É leviano lutar contra um gênio que já saiu da garrafa: mais razoável é se atentar para o que ele poderá ou não fazer, e sem dúvida a regulação da inteligência artificial deve continuar no centro do debate por afetar diretamente o funcionamento do mercado editorial.

Nessa valsa para o futuro, houve avanços e refluxos. Festivais de peso como a Flip apostaram em quebrar padrões com elencos mais diversificados, num esforço de trazer ao centro autores menos conhecidos —aliás, principalmente autoras— e formatos literários antes desprezados por um cânone que, tempos atrás, torcia o nariz para a homenageada Pagu.

Foi assim que a tradicional festa de Paraty —depois de sofrer com uma torrente de caos provocada pela chuva que derrubou a rede elétrica da cidade— abriu espaço para a oralidade cativante de criadoras como Leda Maria Martins, Carla Akotirene e Luiza Romão.

A metamorfose da Flip não agradou a todo mundo e enfrentou relativo desinteresse de um público não muito disposto a mergulhar nas experimentações propostas, o que se refletiu num menor comparecimento às mesas, ainda que as ruas de Paraty pulsassem de vitalidade como sempre.

A cultura de festivais literários parece cada vez mais sólida, com novos eventos brotando em diversos estados —a Feira do Livro, no Pacaembu, se firmou de vez no concorrido calendário paulistano. A Flup, Festa Literária das Periferias no Rio de Janeiro, atraiu atenções com um campeonato mundial de slam e a reivindicação de Machado de Assis, criador da Academia Brasileira de Letras, como cria de favela.

A ABL, por sinal, abriu os braços para Ailton Krenak, representante da maior relevância dos povos originários brasileiros. O primeiro autor indígena a ocupar uma cadeira na instituição afirmou que sua eleição simboliza o acolhimento das diversas línguas que se falam nessa terra.

E Machado, pai de todos, se viu envolto em outra das grandes polêmicas da temporada no mesmo ano em que teve a íntegra de sua obra editada minuciosamente numa nova coleção —pense num escritor que está mais vivo do que nunca.

O Bruxo do Cosme Velho ficou de fora das leituras obrigatórias cobradas pela Fuvest, que seleciona os ingressantes da Universidade de São Paulo. Isso por causa de uma movimentação inédita do vestibular, que exigirá por três anos, a partir da prova de 2026, apenas livros escritos por mulheres.

Antes dessa iniciativa, a USP nunca havia cobrado mais de duas mulheres entre suas leituras obrigatórias, como mostrou um levantamento deste jornal, e listas integralmente masculinas foram regra em diversos anos.

A medida foi bem recebida por parte do leitorado por refletir a valorização da literatura de autoria feminina —a campeã absoluta de vendas de romances no Brasil hoje é uma mulher, Carla Madeira— e a projeção de escritoras antes ignoradas pelos estudos literários.

Mas a Fuvest também foi alvo de duras críticas —que enxergaram na medida militância indevida, com critérios de identidade acima da relevância artística, escanteando autores essenciais da literatura brasileira do principal vestibular do país.

Mas nem só de rupturas de ares progressistas viveu o ano: o Jabuti elegeu principalmente escritores já de carreira consolidada e deu menos bola para a diversidade editorial, com sete prêmios concentrados na maior casa do país, a Companhia das Letras.

O Nobel de Literatura também se satisfez com a previsibilidade, premiando o norueguês Jon Fosse numa decisão que no geral foi celebrada como merecida. A obra de Fosse, que teve dois livros editados no Brasil este ano e terá em breve muitos mais, atira o leitor em uma exploração existencialista que muitos veem como herdeira do modernismo que produziu outro Nobel, Samuel Beckett.

Falando na Academia Sueca, o ano trouxe o adeus de dois antigos vencedores: Louise Glück, poeta americana que ganhou há três anos, e Kenzaburo Oe, romancista japonês que arrebatou o troféu em 1994. Além disso, levou embora escritores admirados que volta e meia habitavam as casas de apostas: o niilista americano Cormac McCarthy, o mordaz britânico Martin Amis e o bem-humorado tcheco Milan Kundera.

Foi um período devastador também para a intelectualidade brasileira, que perdeu luminares como Boris Fausto, José Murilo de Carvalho, Antônio Bispo dos Santos, Alberto da Costa e Silva, Cleonice Berardinelli e Claudio Willer.

A sensação de que o mundo virtual engole as tradições, embaralha a realidade e varre um universo inteiro para o passado pode ser dolorosa para os aficionados por literatura, mas é preciso resistir à melancolia.

A Bienal do Livro que aconteceu no Rio de Janeiro em setembro teve recorde absoluto de vendas, com 5,5 milhões de livros indo parar nas mãos de 600 mil leitores, a vasta maioria deles jovens e todos sedentos por ler histórias da mesma maneira que se faz há centenas de anos.

Se depender desses futuros leitores —alguns certamente escritores—, a literatura não tem com que se preocupar.

* WALTER PORTO/ FOLHAPRESS

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