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domingo, 12 de novembro de 2017

A INCRÍVEL ESTÓRIA DA MULHER QUE VIRA PEIXE

    Professor Dr. Ramilton Marinho Costa é Doutor em Sociologia e Professor da UFCG.
Carlos levantou o pincel ainda pingando e leu o que acabou de escrever no cartaz: 
"Não percam, hoje, no Grande Circo Transcontinental, a Sensacional Apresentação da Mulher Que Vira Peixe".

Sorriu contente. Ficara bem atrativo o anúncio. Agora era só distribuir alguns ingressos para que os moleques espalhassem os cartazes pela cidade.
Há duas semanas de espetáculos minguados, a pequena cidade revelara-se uma praça fraca para as artes circenses e nestes dias só dívidas e problemas acumularam-se.
O Grande Circo Transcontinental era uma pequena empresa familiar de um só mastro. Carlos, o proprietário, era também o locutor, bilheteiro, mágico e domador. Agripina, a sua mulher, dividia-se nas tarefas de receber ingressos, vender balas, pousar para fotografias acompanhada de admiradores fotogênicos e, quando começava o espetáculo, ela se transformava na fantástica Pâmela Natacha, dançarina, acrobata na corda e equilibrista sobre cilindro com madeira. Mais três rapazes serviam como armadores, carregadores e palhaços. Eraldo César, o empresário e relações públicas, encarregava-se apenas do trato burocrático junto às autoridades municipais; embora ainda vendesse maconha por conta própria; e não raro, quando muito estressado, ele mesmo apresentava o salto mortal triplo, de olhos vendados e sem rede de proteção.
Apresentando atrações comuns aos espetáculos dessa natureza, o Grande Circo Transcontinental destacava-se, contudo, por apresentar o imperdível número da Galinha de Amsterdam, perita no sapateado, com o auxílio oculto de um redoxon aplicado no traseiro; e a corajosa Jupira, cachorrinha trapezista africana, adestrada em subir a escada com a cooperação invisível de um náilon amarrado na coleira, para de cima saltar, depois de aplicado um choque elétrico debaixo das patas.
Com os Dramas finalizavam á noite. Neles Carlos e Agripina, além de atuarem como protagonistas, preenchiam também quase todos os outros papéis das encenações, cujo repertório variava de Romeu e Julieta do Sertão a uma ficção científica ambientada na caatinga.
A encenação de histórias religiosas foi suspensa desde o dia em que Carlos, no papel de Jesus, se viu açoitado de forma bastante realista por um dos seus empregados que, se aproveitando da condição de centurião romano, achou por bem cobrar direitos trabalhistas. Depois da terceira lamborada, Carlos sentiu o sangue subir à cabeça e não viu mais nada. Jogou a cruz no chão, chamou de filho da puta o soldado herege e à bofetada o expulsou do picadeiro, incentivado pelo público que, de pé e emocionado, aplaudia aquela justa reviravolta bíblica.
Pela tardinha, a Estória da Mulher que Vira Peixe tinha de tal forma se espalhado que, quando Carlos saiu para fazer propaganda na sua Variant Sonora, foi obrigado a parar em toda esquina para vender ingressos antecipados, disputados por pequenas multidões que se faziam a sua volta.
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O Grande Circo Transcontinental teve seu maior público neste dia. Encerraram mais cedo a venda de ingressos, pois não havia possibilidade de acomodar nem mais um curioso debaixo daquela lona marcada pelos furos da vida errante.
Carlos abriu o espetáculo saudando os senhores e as senhoras, como de praxe, e prometia para o final o momento mais esperado de todos os tempos: o segredo proveniente do antigo Egito e transmitido pelos ciganos - A Incrível Façanha da Mulher que Vira Peixe. Foi calorosamente aplaudido, assim como sucedia todas as outras vezes que, terminada uma apresentação, voltava para lembrar que ficassem atentos, pois pouco tempo faltava para presenciarem o que os seus olhos jamais puderam ver e a mente sequer ousaria imaginar, a revelação de um poder através do qual Cruzadas haviam sido derrotadas, o Papa Leão X, misteriosamente assassinado, e judeus, exterminados. É esse, minha gente, o maior espetáculo da terra - A Mulher que Vira Peixe.
A sua voz então se fez misteriosa e, acompanhada pelas batidas neuróticas do tarol, anunciou a cigana espanhola, Maltides Escalera, que outra não era, se não Agripina, trajando o mesmo conjunto usado por Pâmela Natacha no número de dança exceto a túnica branca e uns brincos de argola usados nas dramatizações.
A cigana foi aplaudida, saudada por gritos e assobios atrevidos.
Depois de alguns gestos mágicos, ela abriu um baú preto posto a sua frente. Nesse instante foi tão intenso o silêncio que era possível se ouvir, em qualquer canto do circo, o ranger da dobradiça enferrujada. Sem desviar os olhos do público e fazendo com as mãos os gestos ondulosos de encantador de serpente, ela puxou do baú uma frigideira gasta, com a qual desfilou como se carregasse o Santo Graal. Voltou para frente do baú e, sem interromper a sua dança mística, retirou de dentro dele um pequeno peixe, jogou-o na frigideira e, com habilidade, pôs-se a virá-lo e desvirá-lo no ar por seguidas vezes.
O público permaneceu silencioso e compenetrado, absorvido numa atmosfera de pura irrealidade, até Carlos desejar a todos uma boa noite e dar por encerrada a sensacional apresentação da Mulher que Vira Peixe.
* Do meu livro "Ninguém Matou Baltazar - Edufcg, Campina Grande, 2012.

Blog rafaelrag

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