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sábado, 31 de dezembro de 2016

Mamãe vai Viajar de Volta para Alagoa Grande depois de 50 anos Morando no Rio de Janeiro

Como eu queria estar na cabeça dela ao cruzar o portal de entrada de Alagoa Grande

                                                                   Marcus Faustini

Minha mãe retornará, nos primeiros dias de janeiro, à sua cidade de origem. Com os pés descalços, promete, entre risadas travessas, subir num pé de manga novamente em Alagoa Grande, Paraíba, depois de quase 50 anos desde que veio morar no Rio de Janeiro. Foi a última dos mais de dez irmãos a migrar para uma cidade grande. Era a caçula, teve que esperar a vez. Durante a vida que fez por aqui, nunca passou uma semana sem falar de sua terra. Agora, vive a excitação de passar 30 dias mergulhada no lugar que carrega suas lembranças de infância e adolescência.

O grande momento, esperado e declarado toda vez que falamos da viagem, é rever a casa onde cresceu junto com irmãs, irmãos, meu avô e avó, e de onde partiam para o trabalho na roça. Essa casa habita as conversas de Natal da família desde meus tempos de moleque. Todo dia 25 de dezembro meus tios vindos da Paraíba e primos nascidos aqui se reuniam no apartamento 504 do bloco 10 do conjunto habitacional da Rua Dilermando Reis, nas bordas da linha de trem, do Rio Faria Timbó e da Avenida Suburbana, no Jacarezinho. A partitura emocional, repetida todo ano depois de passar por intermináveis reconciliações familiares anuais, terminava sempre com a história do que fazer com a casa onde foi iniciada a saga da família. Escrevo a coluna imaginando a emoção de minha mãe diante desta casa. Já pedi para mandar foto, já combinamos que ela vai me telefonar pra contar o que sentiu. Impossível não se mobilizar emocionalmente por algo que faz você perceber sua mãe como mulher que tem uma história além da sua. É um sentimento que refaz o laço em novo alcance.
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Saudades da Paraíba poderia ser uma tatuagem no braço de minha mãe, se fosse mais afeita a marcar o corpo com sentimentos. Mas sua saudade foi cultivada com fotos, relatos orais e alentada, sem lágrimas, com a alegria de telefonemas e cartas para parentes ao longo desses anos. Os próximos dias são de contagem regressiva, hora de celebrar a saudade do lugar de origem com a presença. Vai poder chamar inhame de cará e aipim de macaxeira. Quanta liberdade cabe nesta viagem! Sem nenhuma preocupação de estilo narrativo ou de teoria social. Sem a disciplina do diário de selfies, nem relatos de afirmação de identidade, o compromisso da viagem de minha mãe é com a costura dos sentimentos que significam sua vida.

Estou diante de um dos momentos mais importantes da vida de uma pessoa. Neste último dia 25 de dezembro, no almoço de Natal, em nossa casa no Cesarão, em Santa Cruz, já era possível perceber sua euforia com a viagem. Não é a primeira que faz, mas é uma das mais desejadas. Como eu queria estar na cabeça de minha mãe ao cruzar o portal de entrada da cidade. Como eu gostaria de estar ao seu lado de forma não invasiva, sem uma câmera, sem a vontade transformar sua viagem numa história, sem olhar pra ela como minha mãe. Mas esse momento é dela. E é uma alegria ter contribuído com ele. Estou diante de uma mulher que realiza um dos seus projetos de vida, cultivado com firmeza sentimental durante anos.

Fazer bonecas de sabugo de milho e fugir de casa escondida para ir ao baile na praça central da cidade podem soar como um folclore distante por conta da estética que, durante anos, representou esse universo como ingênuo. Mas, nas repetidas vezes que escutei “a mãe” retornar a fragmentos de memórias de sua infância, o modo de contar, com delicadas mudanças do tom de voz, mostraram essas vivências tão viscerais quanto as celebradas narrativas juvenis urbanas. Ao encontrar alguma jovem da cidade, hoje, será que ela se identificará nela? Que gesto, feito por alguém que encontrar por lá, disparará lembranças que embalarão novas histórias em seu retorno ao Rio?

Diz-se por aí que nada é tão importante para um nordestino migrante quanto a saudade de sua terra. Olhando daqui, penso que adquiri desta parte da família essa relação épica com o lugar de origem. Talvez seja por isso essa insistência de basear a ação e a criação a partir de territórios do Rio. Junto com minha mãe, irá uma das irmãs mais velhas. Uma tia que, determinada, sempre fez do ato de viajar e visitar parentes distantes um dos principais modos de estar na vida.

Planejamos essa viagem durante todo ano de 2016. Minha mãe não está apenas fazendo uma viagem, uma visita. Está retornando. Retornar fortalece o sentido de uma vida. Uma viagem de retorno é carregada de uma palheta de sentimentos do tamanho daqueles que lemos num romance da Chimamanda Ngozi Adichie. A cidade que cresceu, de sua memória, talvez não exista mais. Mas essa viagem colocará mais camadas, além da nostalgia, nessa intensa relação que possui com seu lugar de origem. Retornar, último aprendizado, de muitos, que adquiri em 2016.

Blog rafaelrag com Nazareno que encontrou esta matéria com Marcus Faustini no portal G1


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