Para criador do projeto da UFABC, a novidade está em simplificar e dar mais liberdade ao ensino superior
Luiz Bevilacqua coordenou a formulação do projeto acadêmico e implantação da Universidade Federal do ABC (UFABC), em 2005. Considerado vanguardista e inovador, o plano da nova universidade paulista desafiou cânones da tradicional academia brasileira. Eliminou departamentos, deu maior liberdade à definição de conteúdos e disciplinas, promoveu a interdisciplinaridade, transformou o método de admissão – o estudante ingressa na universidade e não em um curso determinado. Hoje, a UFABC é modelo nos debates sobre a universidade do futuro.
Segundo ele, ninguém acreditava na UFABC quando foi criada. E essa foi a oportunidade para subverter as tradições e inovar. Menos de dez anos após sua criação, a universidade já figurava entre as melhores do país em termos de publicação, no ENAD e no quesito internacionalização: “Precisamos ser às vezes um pouco rebeldes. Precisa haver um pouco de ousadia. Sendo bom, (o plano) é adotado”, conta.
Na entrevista a seguir, o engenheiro e Professor emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) conta como uma universidade de futuro, pautada em princípios de desburocratização do ensino e mais liberdade pode dar certo no Brasil. “O modelo futuro seria muito simplificado. Mas isso é contra a nossa cultura de criar mais e mais leis. Precisa ter muito mais liberdade, pois não existe um modelo de universidade único para um país como o Brasil”, diz.
Jornal da Ciência: O que teria essa universidade de futuro tão diferente do modelo que temos hoje?
Luiz Bevilacqua: Quando se fala em universidade do futuro, ela vai depender muito das condições locais de cada país. Eu acredito que nosso modelo de universidade no Brasil ficou muito atrasado com relação aos outros, estamos quase com uma universidade do passado.
Mas o que vejo de mais importante nessa universidade de futuro é, primeiro, liberdade maior para os estudantes escolherem suas próprias profissões. Não se pode hoje definir hoje a profissão que os futuros egressos ocuparão. É impossível, nos dias atuais, a universidade formar estritamente para uma profissão. Então é importante dar ao estudante uma maior abertura na escolha de seu próprio currículo.
JC: E quais seriam as características dessa nova universidade?
LB: Certamente com um núcleo básico fixo, que seria a marca do curso. Esta é a primeira característica. A segunda, que eu sustento, seria a interdisciplinaridade. A convergência disciplinar que atinge várias empresas e pesquisas, não permeou para a graduação. Esses cursos ainda oferecem um elenco de disciplinas que é muito restrito, como se fazia há 60 ou 50 anos. É preciso que essa realidade de convergência interdisciplinar seja incorporada desde o início nos estudos e na formação do graduado. Terceiro, é importante considerar, ainda do ponto de vista de ensino-aprendizagem, os cursos online, principalmente os que podem ser feitos via internet, chamados MOOC (Massive Online Open Courses). É uma realidade, a partir dessa ferramenta que é extremamente importante.
Com relação ao Brasil, existe outro problema que precisa ser resolvido, que é a divisão de tipos de educação: uma divisão mais voltada ao trabalho, mais prática, técnica, mas com menos ênfase na ciência; faltam escolas técnicas no Brasil.
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A imagem que eu faço é que esse choque cultural, que é o avanço muito rápido da ciência, é semelhante a uma onda de praia, e numa onda a gente surfa, a gente não nada. Em águas calmas, quando a ciência caminhava lentamente, era possível fazer um desenvolvimento do conhecimento, com os cursos orientados para pontos específicos. Hoje isso não adianta, é muito rápido, temos que estar preparados para mudar de rumo muito rapidamente. Um exemplo é a impressora 3D, o engenheiro que se formou há quatro anos não aprendeu essa tecnologia. É tudo violentamente rápido.
Então são essas as características que eu entendo para a universidade de futuro: a convergência disciplinar na pesquisa e na graduação; estabelecer maior liberdade para os estudantes para escolherem seus próprios destinos; e educar para a criatividade. É uma formação mais geral, e depois os estudantes têm maior liberdade de ter a iniciativa de complementar aquilo que precisam para o futuro.
JC: Como o senhor acha que o Brasil se adaptará à universidade de futuro?
LB: Nós temos uma situação peculiar porque já estamos atrasados com relação a esse futuro. Eu tenho muitas dúvidas se seríamos capazes de fazer isso, em termos culturais. Já foi proposto ao Ministro, recentemente em São Paulo, que ele refletisse sobre uma maior liberdade na formação universitária pelo Brasil inteiro. Um currículo proposto pelo MEC hoje, centralizado, coloca as universidades em uma prisão. Um engenheiro que se forma no Acre não tem nada a ver com o engenheiro que se forma em São Paulo. São outras necessidades, outros tipos de formação. Tem sido pedido ao MEC, portanto, uma maior liberdade. Com isso, abrir um pouco a cabeça do Conselho Nacional de Educação. É preciso abrir um pouco mão do controle. Tudo tem que ficar preso em um grupo de leis que são imutáveis para todo o País. Isso é um absurdo.
Isso foi levado ao Ministro, várias pessoas vêm escrevendo sobre isso, mas mudar a legislação é outra coisa. Então, precisamos ser às vezes um pouco rebeldes. Foi esse o caso da UFABC. Como ninguém acreditava muito na UFABC quando foi criada, ela ficou fora do foco. Como ninguém falou nada, conseguimos criar um modelo que hoje é exemplo pro Brasil. Precisa haver um pouco de ousadia. Sendo bom, é adotado.
JC: Como fazer para que ensino e pesquisa caminhem juntos para esse futuro, garantindo uma qualidade, quando a tendência à universalização do ensino superior aponta justamente para o oposto, para uma massificação?
LB: Eu sempre pego a UFABC porque eu tive o prazer de começar. A UFABC, em 2013, em termos de publicação era a melhor de longe. No ENAD está entre as melhores do Brasil. No quesito internacionalização, de acordo dom a Folha de S. Paulo, é a melhor. Vários indicadores mostram que o modelo pode e dá certo. Porém é preciso tomar algumas medidas para não deixar inchar. Precisa parar de crescer e reforçar. Mas está demonstrado que esse é um modelo que pode ser feito e que dá certo. Tem prova concreta de que o Brasil é capaz de fazer isso. Mas precisa demonstrar esses exemplos.
Agora melhorou um pouco, mas no Brasil há uma supervalorização do diploma e não da competência. Às vezes não precisa da teoria para resolver problema, é preciso criar um equilíbrio melhor ente universidade e institutos tecnológicos. Nos institutos tecnológicos, o ensino tem que ser também criativo, mas de outro jeito. Hoje o profissional bom é aquele que tem capacidade de procurar soluções.
JC: A questão, portanto, não é mais se as mudanças virão ou não; pode-se dizer que, na verdade esse futuro já chegou. A pergunta, então, deveria ser como não deixar que a universidade seja conduzida sem planejamento?
LB: O planejamento deve ser nas coisas mais fundamentais. A universidade precisa ser mais livre. E o planejamento fundamental seria esse: primeiro eliminar departamentos, no máximo centros – ciências e natureza, humanas e sociais e engenharia. Isso já é um grande salto, pois induz as pessoas a conversarem entre si.
Outro exemplo, da UFABC, foi o centro de ciências humanas e sociais estarem junto ao de biologia e ciências naturais, permitindo uma comunicação com a filosofia da ciência. O plano seria simplificar. Menos aulas e mais lugares para os estudantes estudarem na universidade, promover conversas, discussões, criar um ambiente onde as pessoas se sentem satisfeitas em fazer a cabeça funcionar.
Manter um núcleo de disciplinas obrigatórias pequeno, orientado de acordo com o avanço científico, o que significa trazer essa visão interdisciplinar para os cursos de graduação. Reestruturação das disciplinas. E o resto os estudantes escolhem, não precisam essa quantidade enorme de disciplinas. Isso reduz o corpo docente com mais qualificação. O professor expõe a matéria aos estudantes e depois as dúvidas são discutidas em pequenos grupos. Não precisa tanta aula, precisa mais estudos. Essa cultura tem que acabar.
Não precisa também dividir graduação e pós, seria necessário apenas uma Pró-reitoria, de aprendizado, quer dizer, é possível simplificar as estruturas. No entanto, a tendência aqui é compartimentar, criar mais caixinhas no organograma, quando, na verdade, deveria diminuir. O modelo futuro seria muito simplificado. Mas isso é muito contra a nossa cultura de criar mais e mais leis. Precisa ter mais liberdade, pois não existe um modelo de universidade único para um país como o Brasil.
Daniela Klebis/Jornal da Ciência
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