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terça-feira, 8 de abril de 2014

Artigo - A ruptura democrática de 1964 e o estado de direito na Nova República


Por José Maria Nóbrega Jr.



Em passagem dos cinquenta anos do chamado “Golpe Militar” de 1964 muito tem se falado, escrito, debatido e discutido nas redes sociais, na imprensa livre e nas universidades. Muito do que tem se dito está envolto em grande emoção e é marcado por debates acalorados, em sua maioria com forte viés maniqueísta, onde os defensores da resistência ao regime de exceção distribuem insultos aos torturadores do antigo regime autoritário e os defensores da chamada “Revolução de 1964” defende o indefensável em nome de certa “moralidade” às avessas. Muito pouco se discute do ponto de vista da análise política, ou seja, da perspectiva diversa que envolve um período ainda tão próximo e tão marcadamente violento e excludente politicamente. Foi retrocesso político o que ocorreu no período entre 1964 e 1985? Não dá para ter dúvidas que sim. Por outro lado, o que podemos tirar dessa lição? São muitas leituras, mas pouco debate em torno do desenho das instituições do período somado a poucos estudos sobre o comportamento dos principais atores políticos daquela época. É nesse caminho que pretendo tecer algumas linhas.



O que aconteceu na década de sessenta no mundo no qual o Brasil estava envolvido? Naquele período a radicalização do conservadorismo provocado pelo contexto da Guerra Fria influenciou decisivamente no comportamento dos principais atores políticos que estavam no comando das máquinas públicas nos diversos regimes políticos, inclusive nos países cêntricos. Os EUA eram governados por elites conservadoras que temiam o avanço do comunismo que foi endossado como forma de governo e de sociedade na Ilha de Cuba. A Revolução Cubana precisava ser estancada em sua evolução dentro da América Latina. Região esta até então de pouca atenção dispensada pelos norte-americanos. Contudo, o conservadorismo político enraizado nos dois partidos políticos majoritários da democracia estadunidense corroborou para moldar o comportamento dos atores políticos chefes de governo dos EUA em relação a sua política externa com os países de seu “quintal”. Ora, Cuba era quintal dos EUA e passava por mudanças radicais patrocinadas pela principal potência que rivalizava o poderio hegemônico com os EUA naquele período, a URSS. Esta, depois de enviar os mísseis em 1962 para a Ilha de Fidel Castro, demonstrava, desde a Guerra das Coreias no início da década de cinquenta, que queria fatiar o mundo em esferas de influência tentando limitar drasticamente a influência norte americana, inclusive na América Latina. A Operação Condor e os acordos nos bastidores entre os EUA e os diversos quadros políticos conservadores dos países latino americanos levaram muitos desses países a executarem mudanças bruscas em seus regimes políticos, instalando modelos autoritários de governos limitadores das liberdades individuais em nome da luta contra a “praga” do comunismo. Esse fator foi uma das variáveis as quais influenciaram no escalonar da ruptura que vingou no Brasil na década de sessenta e entrou nas décadas de setenta e oitenta.




Como era o nosso regime político antes da ruptura autoritária? O Brasil vivia sob um regime político semidemocrático, ou seja, tínhamos uma estrutura institucional pluripartidária estável – com treze partidos políticos disputando os pleitos eleitorais nas três esferas da Federação – com eleições livres e relativamente limpas com sufrágio limitado (Por exemplo: nas eleições municipais de 1962 a população eleitoral brasileira era de 18.496 milhões para uma população de 75.695 milhões, o que equivalia a 24,5% da população brasileira [Fonte: TSE. Dados Estatísticos, 1973 apud Lavareda, 1991]). Diferente do que muitos cientistas sociais afirmam, a democracia representativa brasileira era robusta com níveis de disputa partidária similar a países de democracias políticas mais antigas. Não havia, nem de longe (como afirma o atual Senador da República Pedro Simon), previsões as quais o Brasil atravessaria um retrocesso institucional em seu modelo de democracia. Mas, as circunstâncias históricas externas e internas favoreceram a interrupção da democracia brasileira. A democracia como método de escolha não era (e não é) suficiente para consolidar um regime político democrático. Na lacuna desse regime, em suas zonas marrons, foram criadas as condições para a instalação do regime de exceção em nossas plagas.



Quais foram as condições institucionais para a mudança drástica de modelo político no Brasil? Sabe-se que João Goulart vinha tendo sérias dificuldades de se legitimar perante o corpo político nacional. Com a renúncia de Jânio Quadros em 1961 e a instalação do Parlamentarismo em 1963 a força política do ator político Presidente João Goulart fora fragilizada. Não havia uma leitura do modelo democrático e os partidos políticos rivalizavam de forma intestinal em seus debates. Seguindo a linha de tantos cientistas sociais, e daí destaco o professor Gláucio Soares em seu livro “Democracia Interrompida”, os partidos eram frágeis do ponto de vista da articulação nos bastidores. Outra tese, esta do professor Bolívar Lamounier, a estrutura partidária diferia do sistema eleitoral. Apesar da disputa pelo voto do cidadão se dar numa engenharia de estabilidade e de disputa pouco fragmentada, nos bastidores dos partidos políticos existia uma rejeição muito forte ao nome de João Goulart, somado isto ao anticomunismo implantado como uma verdadeira “doença” que devia ser exterminada, ao exemplo de Cuba, os civis, em sua maioria, se mostravam pouco articulados naquele processo. Dois atores políticos civis foram fundamentais: primeiro, Magalhães Pinto, governador de Minas Gerais, e de outro lado, Carlos Lacerda, governador do Estado da Guanabara, foram atores que apoiaram uma solução armada ao espectro ameaçador do comunismo latino-americano.



A instalação do regime de exceção no Brasil foi vista por alguns conservadores como a manutenção da democracia representativa e da economia capitalista. Só que eles não contavam que as Forças Armadas, ao chegar novamente ao poder, dificilmente iria querer soltar a espada do poder de suas mãos. Instalado o regime, as cassações, o fechamento do Congresso, a instalação de governos estaduais sob intervenção, atos institucionais que cessaram as liberdades civis e políticas, o Brasil entrou num período dos mais atrasados do ponto de vista político e social de sua história.



No início até 1973, com o “milagre econômico”, o crescimento estrutural provocado por uma política de substituição de importações com endividamento externo em proporções astronômicas, o legado do regime militar (da ruptura democrática) foi de maiores níveis de desigualdade de renda e social, dívida externa estratosférica, inflação de mais de 200% ao ano e um desgaste político e social nunca antes visto na história do país. A Ditadura Militar, ou Regime Autoritário, sem entrar em peculiaridades conceituais, deixou uma dívida social e econômica muito grande para a democracia em seu ressurgimento a partir de 1984 com os movimentos sociais das Diretas!



O processo de descompressão tinha começado dez anos antes, em 1974, no governo do General Ernesto Geisel. Descompressão esta em meio a uma disputa intestinal entre os chamados “linha dura” com os moderados de dentro do regime. Dos dois lados tinham civis e militares. A morte do jornalista Wladimir Herzog dentro dos porões do DOI-CODI de São Paulo aterrorizou até o mais insensível analista do período. A imagem do Herzog pendurado por uma corda a uma altura de um metro e meio, com as pernas curvas, chocou a opinião pública nacional e, sobretudo, internacional. O próprio presidente pressionou para saber o que tinha realmente ocorrido, e a ala conservadora vinha mostrando desequilíbrio o que fortaleceu os movimentos em prol do retorno da normalidade democrática. A Lei de Anistia foi a resposta do governo seguinte, do General Figueiredo. Anistiando todos aqueles que pegaram em armas contra o regime e, por sua vez, “perdoando” os excessos dos agentes do estado que praticaram torturas das mais desumanas.



Período violento, o regime militar foi mais violento que a nossa atual semidemocracia? A resposta é, infelizmente, não. Do ponto de vista da violência política, sim, o regime foi o mais violento, até por que não se tem conhecimento, desde 1985, de prisões por divergências políticas em nosso país. Contudo, do ponto de vista da violência urbana e rural, o Brasil se tornou bem mais violento. Os crimes de tortura e assassinatos de ontem são ofuscados pela criminalidade violenta que grassa as principais cidades do país em um movimento de ascendente que coloca em xeque a própria democracia. Até que ponto uma democracia suporta índices de homicídios tão elevados como os encontrado em suas regiões, estados e municípios? Nós não temos zonas marrons, a grande parte das cidades mais importantes, mais populosas, com os maiores colégios eleitorais, com o maior dinamismo econômico, são também os locais mais violentos, o que fragiliza o estado de direito na Nova República. Uma democracia não se sustenta com violações constantes dos direitos civis.



Superamos o regime militar de vez? Acredito que sim. Dificilmente teremos um regime político com aquele formato. As Forças Armadas saíram de vez do quadro político brasileiro? Não. As FFAA continuam a demandar poder. Dentro do Ministério da Defesa, na Agência Brasileira de Inteligência, no modelo de segurança pública (militarizado) e até como garantes da lei e da ordem democráticas (artigo 142 da Constituição de 1988). As FFAA saíram do governo, mas mantém poder e estão de vigília em relação à manutenção da lei e da ordem. É só ver quem está no comando da ocupação da Favela da Maré no Rio de Janeiro. Num momento de grandes manifestações cobrando do governo por políticas públicas de qualidade, é importante o governo de plantão ter as Forças Armadas ao seu lado.





José Maria Nóbrega Jr é professor da UFCG
Blog rafaelrag com o portal da UFCG

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