Você está viajando para o exterior e sua filha de 15 anos é vítima de
violência sexual. A família está em um país que não permite nenhuma
forma de intervenção para diminuir o risco de uma gravidez indesejada. O
que você faz? Eu pegaria o primeiro voo para o Brasil, país em que está
previsto o uso de contracepção de emergência (pílula do dia seguinte,
que deve ser tomada em até 72 horas após a relação suspeita), e onde ela
poderia receber o coquetel de profilaxia da infecção pelo HIV, causador
da aids (que deve ser iniciado em até 24 horas após o sexo sem
proteção). Nada mais civilizado do que tentar utilizar todas as
tecnologias disponíveis para garantir a saúde e o bem-estar da garota.
Não parece lógico? Para muita gente, sim, mas para outros, não!
Na quarta-feira, o sempre onipresente deputado Marco Feliciano
(PSC-SP), presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara e pastor
evangélico, encaminhou à presidente Dilma Rousseff um pedido de veto ao
projeto já aprovado no Congresso que garante atendimento imediato nos
hospitais às vítimas de violência sexual. Outros líderes religiosos
também pressionaram os ministros Gilberto Carvalho e Gleisi Hoffmann. O
PLC 03/2013, da deputada Iara Bernardi (PT-SC), prevê contracepção de
emergência, profilaxia da infecção contra o HIV e esclarecimento sobre
os direitos legais da vítima (se houver gestação resultante do estupro, a
lei brasileira garante direito à interrupção dessa gravidez).
Na prática, tudo que o projeto prevê já é realizado no País. Pílula
do dia seguinte está disponível nos postos de saúde e hospitais (e não
apenas para vítimas de violência sexual), profilaxia da infecção pelo
HIV está indicada em algumas situações e a comprovação da violência
sexual também garante direito à interrupção da gestação, se a mulher
assim o desejar. Nada é novidade! O projeto só organiza esse atendimento
da mulher vítima de violência que, muitas vezes, fica perdida. Ninguém é
obrigado a tomar a pílula do dia seguinte, muito menos interromper a
gestação. É uma escolha!
Quando a religião se embrenha no campo da saúde, o que é óbvio pode
ganhar contornos pouco definidos. Assim, contracepção de emergência é
confundida com aborto, camisinha é proibida e pílula anticoncepcional
não pode ser utilizada. Sexo só dentro de um casamento sólido e
monogâmico! Só que a realidade do mundo ocidental não é bem essa.
Nos dias de hoje, jovens fazem sexo antes do casamento com parceiros
que nem sempre vão ser os definitivos. Nessas situações, que falta fazem
uma camisinha, um método anticoncepcional efetivo e, em caso de
emergência, a pílula do dia seguinte!
Os religiosos têm suas crenças, que merecem todo respeito e que
encontram eco em parte dos seus seguidores. Mas daí a imaginar que a
religião vai mudar o comportamento sexual de toda a sociedade é quase um
delírio, que resulta em distorções como proibir a contracepção, não
permitir que vítimas de violência sexual possam interromper a gestação,
tentar "curar" gays, e por aí vai.
Seria interessante fazer uma pesquisa entre os milhões de jovens que
estarão a partir de terça-feira na Jornada Mundial da Juventude, no Rio,
e que têm um encontro marcado com o papa Francisco nos próximos dias. O
que será que eles pensam e fazem no sexo? Todos estão esperando o
casamento? Duvido!
Nos anos de governo mais conservador nos EUA (George Bush), em que
milhões de dólares foram investidos em abstinência sexual, em vez de
serem utilizados em prevenção, o tiro saiu pela culatra. A esmagadora
maioria dos que se comprometeram em não fazer sexo não conseguiu seguir a
meta no intervalo de um ano. Pior: sem prevenção, as taxas de DSTs e
gestação indesejada aumentaram. Que tal dissociar religião e saúde, para
garantir bem-estar e vida sexual segura para a população?
AIRO BOUER - O Estado de S.Paulo
* É PSIQUIATRA E TRABALHA EM SAÚDE E PREVENÇÃO
Blog rafaelrag com Sabrina Kely
Nenhum comentário:
Postar um comentário